quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Teatro (profissional)

A ideia não é nova, a discussão é antiga e, ocasionalmente, surge quem a recupere e a intente.

Desconheço o que está na génese desta iniciativa, se é apenas um mero expediente na agenda política ou se resulta da auscultação do sector artístico.

Fazendo fé na reacção dos artistas à intenção de gerar uma nova entidade pública empresarial (paradoxalmente quando estamos num processo de reformulação da participação da região no número de empresas e associações em que participa) para gerir os destinos de uma companhia de teatro profissional, com sede na ilha Terceira, o projecto está longe de ser consensual ou ter a sua validação.

E não será difícil perceber porquê.

No passado recente, temos assistido a um maior dinamismo dos agentes culturais da região, fruto de uma geração que saiu para estudar e que pretende regressar (se não a totalidade pelo menos uma parte), pela actividade desenvolvida por um conjunto de entidades públicas e privadas no sector cultural (que têm posicionado o arquipélago no mapa artístico).

Formalizar a intenção de sediar a constituição deste grupo profissional, na ilha Terceira, por via da “grande tradição que a ilha tem no desempenho de artes cénicas (…)” e “pelo próprio caráter espontâneo associado às danças e bailinhos de Carnaval” é um péssimo princípio, na essência é redutor e é revelador da forma como continuamos a olhar para a nossa descontinuidade territorial, na medida em que a localização é o dado menos importante desta equação.

Como já (aqui) defendi por inúmeras ocasiões, o futuro das artes nos Açores é o da profissionalização, não há volta a dar, mas não por este caminho.

Para que isso possa (um dia) vir a acontecer, temos todos de trabalhar em estreita cumplicidade (entidades oficiais: locais, municipais e regionais; artistas e instituições), no sentido de gerar sinergias que permitam um apoio consistente, e duradouro, a esta actividade, permitindo sedimentar o trabalho realizado (como continuado e não esporádico), quer na redefinição de políticas para o sector, quer na formação de públicos e na construção de melhores cidadãos (e de uma melhor cidadania).

A componente pedagógica não carece de uma companhia profissional para ser desenvolvida, ela pode e já é desenvolvida por todos aqueles que actuam nos palcos da região. Se pode ser incrementada e melhor promovida? Parece-me evidente. Pode, inclusive, ser uma âncora da sustentabilidade da própria actividade artística, na colaboração com outros sectores da sociedade, da educação à inclusão social, passando pela sensibilização ambiental à animação turística.

Pela forma como está idealizada, a fundação desta companhia profissional não implica, pelo contrário, desresponsabiliza o papel dos municípios na gestão de conteúdos e das equipas que habitam os auditórios e salas desta região.

Para que se possa conceber um circuito de circulação (e de itinerância à escala regional), temos de garantir que existem condições materiais para poder acolher objectos artísticos contemporâneos, não menorizando as exigências elencadas por companhias e artistas. Como muitas vezes acontece.

Respeitar o trabalho alheio, neste caso artístico, não é favor, é uma condição fundamental para o profissionalmente que nos assiste.

Mais do que fundar uma companhia profissional de Teatro (e já agora porque não de Dança ou mesmo uma Orquestra), o que é necessário é apoiar, de forma substantiva, a actividade de quem já a exerce, inserir critérios de diferenciação (entre os diferentes agentes), realizar encomendas, acompanhar de forma presente a acção desenvolvida no território e fomentar a circulação dentro e fora da região.

* Publicado na edição de 25/02/20 do Açoriano Oriental
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Democracia cultural

O Plano Nacional das Artes (PNA) foi apresentado, formalmente, em Junho do ano passado com a chancela dos Ministérios da Cultura e da Educação (mas a sua práxis pretende distender-se a toda a esfera pública).

Para melhor se dar a conhecer, o PNA tem utilizado a frase de Sophia de Melo Breyner Andresen, na intervenção que fez na Assembleia Constituinte de 2 de Setembro de 1975: «a cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar».

O comissário do Plano Nacional das Artes, Paulo Pires do Vale, curador e professor universitário, esteve, na passada semana, no Museu Carlos Machado para protocolar com a Direção Regional da Cultura a extensão, aos Açores, desta iniciativa que será materializada através do projecto “De Fenais a Fenais: Cultura Matriz do Desenvolvimento Local”.

“De Fenais a Fenais” tem a coordenação do Museu Carlos Machado (cuja acção no território não está confinada aos ‘muros da cidade’ que o acolhe, como fez questão de referir o seu director) e será implementado e desenvolvido, até 2022, num espaço geográfico identificado como de "intervenção prioritária no combate à pobreza e exclusão social, abrangendo as freguesias de Fenais da Luz, Rabo de Peixe, Maia e Fenais da Ajuda".

A escolha do Museu Carlos Machado não é inocente, e parte da sua actividade recente (Museu Móvel, projecto “Para Além da Paisagem - Sete Cidades, para dar alguns exemplos), influenciou, nas palavras do comissário nacional, o carácter de que se reveste o PNA, o qual visa aproximar a cultura e as artes dos cidadãos.

Este não é um Plano que exista por si só, pretende contaminar toda a comunidade, da escolar à empresarial, e terá, igualmente, a responsabilidade de coordenar outros planos sectoriais já existentes, como o Plano Nacional de Leitura, o Plano Nacional de Cinema, a Rede Portuguesa de Museus ou o Programa de Educação Estética e Artística.

A visão que preside a este conjunto de boas intenções é vista sem paternalismos, na medida em que não se pretende decidir sobre o que os cidadãos devem consumir do ponto de vista cultural, pois mais do que ser um facilitador na “democratização da cultura" prende-se incutir um conceito de "democracia cultural", utilizando as palavras de Paulo Pires do Vale, o qual acredita que "todos têm algo a dar para a cultura de todos".

Este é um programa que pretende levar (dar) conhecimento ao (do) território, passando pelo património material e imaterial, e realizando o (necessário) cruzamento com um olhar contemporâneo. A desmistificação da ideia que temos dos artistas, e a sua presença no espaço escola, procura, igualmente, contribuir para operar mudanças na forma como lidamos com a fruição mas, também, com a produção cultural. Contribuindo activamente para “alavancar o pensamento crítico, a nossa capacidade de resolução de problemas e a nossa capacidade de criatividade individual e colectiva” (Tiago Brandão Rodrigues, Público, junho 2019).

Este é um período que implica (forçosamente) uma leitura esclarecida - sobre a volatilidade do que se passa à nossa volta - e torna pertinente o “repensar a nossa noção de literacia. O que é hoje ser-se culto ou alfabetizado?” (George Steiner, Expresso, junho 2017).

E em boa hora se corporizou este Plano Nacional das Artes, num tempo em que os países têm de cortar em coisas “supérfluas”, alienando as humanidades em detrimento de “competências úteis e profundamente técnicas e adequadas à geração de lucro” (Martha C. Nussbaum, 2019).

* Publicado na edição de 10/02/20 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Reflexão (colectiva)

A reportagem do serviço público de rádio e televisão mostra a escassez de bens alimentares nas ilhas das Flores e Corvo, as imagens de prateleiras vazias não deixam ninguém indiferente, em particular, num período (simbólico) como o Natal.

Para além da destruição (quase total) do porto das Lajes das Flores, este é o efeito mais evidente da incapacidade gerada pela inoperacionalidade desta infraestrutura que, apesar do enorme esforço de adequação por parte da entidade que gere os portos da região, tem levado à intermitência do abastecimento regular (por via marítima) do grupo ocidental.

Todos os anos o rigor do inverno torna (mais) difícil as ligações (aéreas e marítimas) com as ilhas mais ocidentais da europa, esta não é uma situação nova para estas populações habituadas que estão à borrasca das intempéries e a dias (consecutivos) de (maior) isolamento.

As comunicações são hoje, felizmente, possíveis através da fibra óptica que torna menos penosa a lonjura que as separa do multibanco mais próximo (que indica como alternativa a deslocação ao Faial, Terceira ou mesmo Santa Maria - não é piada, já o testemunhei).

No entanto, temos de ter consciência que nada será como dantes, e os efeitos da passagem do furacão Lorenzo, pelos Açores, não podem ser considerados como um caso isolado e devem constituir um sinal de alerta para o futuro.

A este respeito devemos encarar com enorme seriedade os efeitos resultantes das alterações climáticas e o seu impacto nas ilhas. Temos aqui um exemplo concreto do que poderá ser o nosso futuro (mais próximo) no que concerne à ocorrência de fenómenos climáticos extremos.

Os furacões poderão assolar o arquipélago de forma mais regular e, para tal, devemos, desde já (se é que já não os temos), pôr em prática planos de contingência (alimentar, por exemplo) para mitigar situações como a que as Flores e o Corvo têm experienciado.

Apesar de todos os esforços envidados, pelas entidades oficiais, locais, municipais, regionais e nacionais, para o restabelecimento da normalidade (possível) àquelas ilhas, desengane-se quem assumir compromissos com prazos irrealistas e soluções impossíveis.

Importa frisar que os danos infligidos por este fenómeno (extremo) ascendem aos trezentos milhões de euros, em todo o arquipélago, os quais levarão anos a ser recuperados. Este não é um assunto que se resolva de um dia para o outro.

O político que intenta retirar dividendos (com recurso a uma calamidade pública) não pode ser uma pessoa idónea. A ética democrática deve ser um valor estimado perante a sistemática desvalorização do compromisso e da palavra, numa realidade paralela e num espaço (online) repleto de ódio, vitimização, notícias falsas, factos alternativos e teorias da conspiração.

Outro dado a destacar desta ocorrência (extraordinária) tem de ver com a importação de produtos agrícolas. Considero que a defesa da nossa sustentabilidade ambiental, também, passará por aqui. Mas será que já medimos a pegada ecológica das batatas e cebolas que nos chegam do exterior? Não será esta uma oportunidade para alterarmos comportamentos e questionar se faz sentido importar vegetais e legumes frescos? E, complementarmente, reduzirmos a nossa dependência alimentar, tornando a nossa existência, efectivamente, mais saudável, sustentável e evitando a rotura de produtos alimentares?

A este propósito cito John Fowler no seu ‘”Diário de um Náufrago nas Flores e no Faial” (IAC, 2017), no qual retrata a vivência na ilha das Flores na primeira metade do século XIX: “têm um solo de invulgar riqueza e fertilidade, produzindo milho indiano, trigo, inhame e batatas e uma oferta abundante de forragem, entre as quais devo incluir o tremoço, criado e cortado para alimentar gado (…) a par com algumas plantações de laranja, maçã, pêras e figos (…)”.

Fica o testemunho histórico para reflexão (colectiva).

* Publicado na edição de 13/01/20 do Açoriano Oriental
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