domingo, 2 de junho de 2024

Vamos trocar umas ideias sobre o assunto…

A editora Artes e Letras Artes e Letras lançou a 2 de maio, na livraria Solmar livraria Solmar, em Ponta Delgada, o nº 5 da “Avenida Marginal”.

Nessa quinta-feira, à mesma hora, aconteciam, várias iniciativas culturais. O problema não é que ocorram todas em simultâneo, esta é uma questão antiga, mas não será a fundamental. O que importa expor é que somos (demasiado poucos), e vezes demais, sempre os mesmos.

Este será, provavelmente, um dos maiores desafios do presente, agravado na pandemia, a necessidade de renovação dos públicos da Cultura. Em particular, nas áreas artísticas tradicionais, face aos desafios gerados pelos novos formatos, especialmente, os digitais, e no impacto gerado junto dos mais novos. Um problema que nos deve convocar a encontrar soluções que permitam uma salutar coexistência (e complementaridade).

Apesar disto, assistimos, paralelamente, ao revivalismo (artístico e comercial) em torno dos formatos ‘analógicos’, no ressurgimento do vinil, das K7s e até mesmo dos CDs, no caso da música, do VHS no cinema (ou nas artes visuais), tanto como apropriação cultural, simples inspiração ou numa abordagem a referências que possibilitem outras (re)leituras.

Em Portugal, por exemplo, no circuito das livrarias independentes, as quais têm contribuído para uma maior diversidade (de propostas e conteúdos) no panorama editorial português, existe um fenómeno crescente da actividade alfarrabista, no dar uma nova vida aos livros usados, nomeadamente, na procura por edições de livros que já não estão disponíveis no mercado editorial e que agora são motivo de interesse por parte de outras gerações.

Os mais novos chegam aos livros, sobretudo, através das redes sociais (e das suas celebridades), os chamados ‘influencers’, em particular, no TikTok (materializado pelo fenómeno viral dos booktokers), contribuindo para o aumento exponencial da venda de livros por todo o mundo.

No estudo “Mercado do Livro e Hábitos de Compra em Portugal”, apresentado em 2023, pela Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), ficamos a saber que menos de dois terços dos portugueses compraram livros e que são os jovens quem está a impulsionar as vendas no nosso país, na medida em que os inquiridos, entre os 15 e os 34 anos, já representam 28% do total do mercado. No entanto, Portugal mantém-se como o país que, na Europa, menos lê.

Outro dado que me parece particularmente relevante tem a ver com os pontos de venda dos livros, na medida em que 70% dos livros são, ainda, e felizmente, vendidos em livrarias, mas os hipermercados já ocupam 30% desta cota (sendo que em algumas ilhas do arquipélago só encontramos livros em espaços indiferenciados).

Existem dados desagregados para os Açores (em que as livrarias são uma espécie rara ou em vias de extinção)?

Neste domínio, faltam elementos concretos sobre o sector do livro, tal como faltam para outras áreas artísticas, dados que ajudariam a sistematizar estratégias e políticas culturais.

Esta questão carece de reflexão e merece ser profusamente discutida, envolvendo vários intervenientes, da Educação à Cultura, na medida em que o livro enfrenta desafios muito relevantes que requerem diálogo, discussão e conhecimento.

Outro aspecto que não pode ser descurado é facto de o “consumo cultural ser socialmente estratificado” (ICS, 2020), na medida em que os hábitos de lazer e de consumo de produtos culturais não estão dissociados dos níveis socioeconómicos e de escolaridade.

Neste cenário, o que leva alguém a querer fundar uma editora? É antes de tudo, um acto de enorme coragem e arrojo, especialmente, numa escala como a nossa, onde por vezes parecem existir mais escritores que leitores. Digo isto com todo o respeito, mas os autores (artistas) não podem ser tratados todos por igual, nem é possível comparar o que não é comparável. Não raras vezes, tendemos a balizar tudo pela mesma bitola.

Este não é um problema exclusivo da literatura. Esta é uma problemática que se coloca nas artes visuais, nas artes performativas ou na música. Nos Açores, o caminho de futuro para a Cultura é o da profissionalização (não vale a pena ignorá-lo).

Em regiões como a nossa, a descontinuidade geográfica e os custos agravados pelos transportes (distribuição e logística), aumentam as assimetrias no acesso a bens e a serviços essenciais, relegando, inexoravelmente, a cultura para uma posição secundária, onde a democratização cultural é determinada pelo estatuto social (status), tenazmente agravada pelos índices sociais que detemos.

Importa alterar este estado de coisas, a começar por colocar a educação “no centro das políticas culturais” (Paulo Pires do Vale). Neste sentido, o cheque-livro apresentado pelo Governo da República, agora secundado pelo Governo Regional, é um caminho para o incentivo ao contacto com os livros e com as livrarias.

A par disto importa garantir um conjunto de outras medidas que aproximem a comunidade literária, e as instituições culturais, da população, com iniciativas de mediação para a leitura e para a promoção do livro.

Em termos legislativos, urge rever os apoios à edição e os objectivos das políticas públicas. Não faz sentido apoiar o livro se depois falhamos em toda a restante cadeia de valor, temos o produto, mas não temos distribuição (regional e nacional), nem promovemos, eficazmente, o acesso à leitura.

A região tem que dar o exemplo, investindo nas suas instituições públicas, ano após ano, para que possam prestar o papel que delas se exige, nomeadamente, pela actualização permanente de conteúdos, em particular, das bibliotecas públicas e escolares, no combate incessante aos baixos índices de leitura e literacia.

E não menos importante, promover uma profunda reflexão sobre a necessidade de existir um Plano Regional de Leitura ou, se em alternativa, não devemos pugnar por garantir a presença dos nossos escritores (e editores) no Plano Nacional de Leitura, com acesso a outros recursos e a mais públicos.

A “Avenida Marginal” é um contributo, e um precioso recurso, para desbravar um caminho sinuoso, cuja missão presta um verdadeiro serviço público no estímulo à inovação e na descoberta de novos nomes no ecossistema literário local.

Manter uma livraria e uma editora é hoje um acto de amor (e militância), mas sobretudo de resistência.

Uma última palavra para o impressivo trabalho do João Amado João Amado que ilustra a capa desta edição, na qual reflecte um universo fantástico e surreal (e que nos parece querer dizer que (sobre)viver nas ilhas, também, consegue ser um desafio surrealista). 

Alexandre Pascoal, maio 2024 


[+] Apresentação da Avenida Marginal nº5, 2 maio de 2024, Livraria Solmar, Ponta Delgada (texto revisto e acrescentado)

[+] publicado na edição de 02 junho 2024 do Açoriano Oriental

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