quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Cultura (em tempo de pandemia)

A pandemia afectou todos, sem excepção, mas uns sofreram, mais do que outros, os efeitos nas suas cadeias de valor.

Pelas vezes que já foi referido, mais parece um lugar-comum dizer-se que o sector cultural foi um dos sectores económicos mais afectados. 

Por forma a corporizar o eventual carácter abstracto desta afirmação, a GESAC (Grupo Europeu de Sociedades de Autores e Compositores) solicitou à consultora EY a realização de um estudo sobre a situação económica das indústrias culturais e criativas (ICC) no contexto europeu. Este estudo revelou, por exemplo, que as ICC empregam mais do dobro dos activos do que as indústrias automóveis e das telecomunicações juntas e representavam, antes da pandemia, cerca de 4,4% do PIB da UE em termos de volume de negócios. 

Embora não existam dados concretos para o efeito das restrições sanitárias nas receitas da cultura nos Açores, podemos seguir-nos pelos dados recolhidos, por este estudo, no qual é demostrado que as perdas do sector somam, em termos europeus, cerca de 31% (199 mil milhões de euros).

Nas contas feitas pela EY, só o sector dos videojogos escapou à perda de receitas culturais, tendo mesmo visto as receitas subir 9%. As quebras são mais acentuadas, como seria expectável, nas artes performativas, onde estão incluídos o teatro e a dança, cuja quebra de receitas foi de 90%. A segunda área mais afetada é a da música, onde as receitas recuaram 76% (em 2020). O estudo analisou, ainda, as diminuições na área das artes visuais (-38%), na arquitectura (-32%), na publicidade (-28%), nos livros (-25%) ou na área da imprensa, nomeadamente, nos jornais e revistas, onde as receitas terão recuado 23%.

Perante a paragem abrupta foi necessário encontrar estratégias de sobrevivência, sendo que num primeiro momento, “ficámos sem reação" (Isabel Craveiro, 24/02/21).

A actividade artística foi totalmente repensada para responder aos desafios de um tempo novo. Neste processo de adaptação, nem todos estavam preparados (orçamentalmente e tecnicamente), tanto instituições como espectadores. A passagem para a dimensão online revelou ser, esta sim, um processo transitório, que permitiu manter o trabalho para alguns artistas e a “relação com o público”.

Considero que esta foi uma solução de recurso para um tempo desesperado. Uma coisa não substitui a outra, mas devemos retirar os melhores ensinamentos desta experiência, sendo certo que a dimensão visual é, hoje, uma parte importante da comunicação das instituições, nesta relação com os seus diferentes públicos, cada vez mais suspensos no(s) ecrã(s).

Este será um dos maiores desafios com que se confrontam as instituições culturais - a de renovar as plateias e fazer com que os mais novos experienciem um espectáculo em sala.

Noutro capítulo, no que que concerne a todos quantos ficaram sem rede, de um dia para o outro, este “novo normal” tornou mais evidente o carácter precário de quem trabalha de forma profissional no sector da cultura. Esta situação não é nova, não é de agora. Tendemos a depreciar estes trabalhadores, não valorizando o seu trabalho, encarando a cultura como um hobby.

Este é um caminho que tem vindo a ser percorrido, mas parece-me fundamental tornar mais visível a complexidade inerente à criação cultural, através de um trabalho de mediação junto do grande público, evidenciando o papel que a cultura tem nas nossas vidas, amplamente presente ao longo da pandemia (nas suas mais variadas formas).

A importância da cultura, bem como a sobrevivência do tecido criativo, está sempre presente no discurso institucional, sobretudo, quando se trata de anunciar os apoios de emergência por forma a debelar os efeitos da pandemia. Contudo, a realidade dos números acaba sempre por lhe atribuir a sua verdadeira dimensão.

O mapeamento do sector cultural, na região e no país, foi realizado no meio da pandemia. Aqui reside parte do problema, na medida em que transparece o reconhecimento (paradoxal) do desconhecimento da Cultura sobre o sector que tutela.

Falamos dos artistas, mas, não raras vezes, esquecemos quem torna possível quem brilha em palco, pelo que a paragem da actividade afectou, sobremaneira, um conjunto de profissionais que vivem dos festivais (festas) de verão, muitas das vezes de forma sazonal, que viram a sua situação profissional tornar-se uma incógnita.

Nestas situações, há sempre quem não perca tempo em ajudar o próximo. Aqui, enalteço o trabalho realizado pela União Audiovisual, na identificação das necessidades, e no fazer chegar a ajuda, a quem dela necessitasse.

A recuperação que importa implementar, neste sector em particular, implica, invariavelmente, financiamento público (e privado), conferindo-lhe, desde logo, outra dignidade orçamental, para desempenhar adequadamente o seu papel. 

Neste sentido, devemos “preservar o essencial, melhorar o muito que ainda está aquém do desejável e inventar o tanto que ainda está por fazer”. (Tiago Rodrigues, TNDM II, 2021).


+ Publicado na revista "As 100 Maiores Empresas dos Açores 2020" publicada a 10/12/2021 pelo Açoriano Oriental 
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sexta-feira, 23 de julho de 2021

Debate (público)

Na passada semana, a RTP-Açores promoveu um debate (em jeito de conversa) sobre o impacto da pandemia no sector cultural do arquipélago.

O tempo foi (e será sempre) curto para falar de todas as questões que preocupam quem trabalha neste sector. No ecrã, este espaço parece (ainda) menor. Tal como na geografia das ilhas, a Cultura agrega múltiplos agentes, com áreas de actuação muito distintas, sendo que, inclusive, dentro de cada uma delas, a realidade da actividade e da dinâmica cultural é, também ela, singular.

Importa frisar que estamos a falar de contextos muito específicos, nem sempre compreendidos no todo nacional, e que a distância (interna) torna mais evidente as assimetrias que, inevitavelmente, se manifestam na relação que estabelecemos entre instituições (e artistas).

Apesar da fragilidade porque passa o sector (situação que não é nova, mas que se adensou em dias de pandemia), existem sinais que apontam caminhos de futuro e que importa ler, sobretudo, quando passou a ser fundamental consolidar recursos humanos (técnicos e criativos) com morada permanente na região.

O combate à intermitência e à precariedade, também, se faz por aqui. Não podemos ter (apenas) estruturas (instituições) com estatuto profissional e ignorar os artistas como profissionais de plenos direitos.

Apesar de toda a incerteza provocada pela pandemia, existiram, igualmente, algumas conquistas, a começar, por exemplo, pelo Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura e pela implementação da Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (RTCP). Estes não são modelos fechados, mas são um princípio.

A pandemia não atingiu todos por igual e muitos músicos (técnicos e empresas), sobretudo estes, ficaram, de um dia para o outro, sem qualquer tipo de rendimento.

Existem apoios, mas a fragilidade da informalidade, que afecta muitos agentes, deste sector, tornou, em muitos casos, inacessível a sua eficácia.

Para além das questões de ordem económica e social, imperativas num momento com este, existem questões que se colocam ao nível da dinâmica da actividade cultural e que põem em risco uma retoma de práticas descontinuadas por esta paragem abrupta e que, neste momento, já soma um ano e meio.

Esta questão é ainda mais pertinente num contexto em que ultimámos uma candidatura de Ponta Delgada, e dos Açores, a Capital Europeia da Cultura em 2027.

Para podermos garantir o amanhã, importa agir com eficácia no contexto presente.

A suspensão da actividade artística coloca em risco um conjunto alargado de agentes, desde filarmónicas, a grupos corais ou a escolas de dança, pelo simples facto das regras sanitárias (que são respeitadas) tornarem impraticável a sua prática.

Nos últimos meses, foi encetado um diálogo (com as autoridades regionais de saúde) no sentido de tornar possível o regresso das actividade culturais (uma aspiração legítima e em conformidade com a evolução da situação sanitária).

Na passada quinta-feira foi, finalmente, alcançado o desfecho pretendido, porquanto, a partir deste sábado, será possível a realização de “eventos públicos, culturais ou desportivos (…) com público” e “em qualquer nível de risco, apenas com limitação de lotação”.

O debate público, em torno, destas e de outras matérias de relevante interesse cultural, não pode, nem deve ficar circunscrito a uma agenda periférica, mas é condição fundamental da nossa existência enquanto comunidade autónoma (que se quer cívica e socialmente participativa). 

+ Publicado na edição de 10/07/21 do Açoriano Oriental 
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terça-feira, 6 de julho de 2021

O tempo que foge não é habitável

O país desconfinou na incerteza do dia seguinte. Não por confiança mas, sobretudo, por (imperiosa) necessidade. 

Ao fim de dois meses, os casos voltaram a subir e a pressão económica (essencialmente turística) fez disparar os internamentos, sendo que (agora) a gravidade e a letalidade são (hipoteticamente) menores (e terão como alvo preferencial grupos etários mais jovens). 

O número (diário) de vítimas associadas à Covid-19 passou a ser uma banalidade, remetida a nota de rodapé do boletim noticioso (à hora de jantar). 

O (alto) risco mantém-se. Mas do pânico inicial (vivenciado em abril e maio do tempo que celebramos ter terminado), passamos à saturação colectiva e ao egoísmo narcisista (à porta fechada). 

Ao contrário do que possamos desejar, a imunidade de grupo não (nos) garante a ausência de casos e o contágio. 

Contudo, há quem considere que a vacina é a (sua) bolha de salvação (e cura eterna), contrastando com aqueles que a recusam por medo (de um destino pior do que aquele que lhes é prometido), alimentando um rol (absurdamente credível) de teorias da conspiração (facilmente propagável no scrolling da timeline).  

O facto é que “uma única dose da vacina não confere um grau de protecção tão elevado e que, por isso, é necessário que as pessoas mantenham todos os cuidados, já mesmo depois de serem inoculadas” (Público,23/06/21).

Um dado que convém (sempre) relembrar, reiterando a importância de aceder a informação (credível).

No arquipélago, o processo de vacinação tem permitido um relaxamento das medidas sanitárias, em particular, nas ilhas onde foi possível ter a colaboração da task-force (para o plano de vacinação contra a COVID-19 em Portugal).

Por ser a maior ilha, com mais população, São Miguel tem assistido a um incremento do processo de vacinação, sem que, no entanto, estes dados tenham (ainda) influência na diminuição no número de casos (positivos) que a continuam a martirizar.

O comprometimento de agir em conformidade (com as regras impostas) é algo que cabe, a cada um de nós, cumprir, na individualização de um acto colectivo (que todos atinge por igual).

O apelo à responsabilidade individual impõe-se mas temos de aprender a viver com uma realidade (nova) que não desaparecerá por decreto.

Para tal, temos de equacionar a retoma progressiva, dentro da razoabilidade possível, de todos os quadrantes da nossa vida colectiva.

Neste sentido, importa encarar com seriedade a reabertura do sector cultural, tal como anunciado na passada quinta-feira pela Secretária Regional da Saúde, impondo medidas que, atendendo à evolução da pandemia, possam permitir o regresso ao(s) palco(s).

Mais do que uma excepcionalidade, é solicitado que seja aplicado o mesmo critério que tem permitido que outros sectores económicos possam funcionar (mesmo que o nível de risco concelhio seja elevado).

Por uma questão de equidade e coerência, parece-nos fundamental a assumpção deste compromisso.

Simbolicamente, seria o reconhecimento que “o tempo que foge não é habitável” (Byung-Chul Han, 2019).

+ Publicado na edição de 26/06/21 do Açoriano Oriental 
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quarta-feira, 30 de junho de 2021

Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses

A lei que cria a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (RTCP) entrou em vigor em 2020 mas só agora foi publicada a sua regulamentação. 

O objectivo da RTCP é que seja composta, essencialmente, pelos teatros e cineteatros existentes em todo o território nacional (incluindo Açores e Madeira) que pretendam aderir voluntariamente e que estejam devidamente credenciados. 

Importa salientar que esta lei está destinada a espaços que promovam uma actividade permanente, estejam dotadas de uma estrutura organizacional (recursos técnicos e humanos) para no âmbito da sua acção realizar regularmente “espetáculos de natureza artística”, a “exibição cinematográfica” e “outras atividades culturais”. 

Para que tal possa acontecer, as entidades interessadas têm de credenciar as suas estruturas, entre 18 junho e 16 julho de 2021, através de formulário disponível no portal da Direção-Geral das Artes (DGARTES), entidade responsável pela credenciação. E quem é que pode solicitar esta credenciação? 

Qualquer entidade, singular ou coletiva, de direito público ou privado, que seja proprietária de um teatro, cineteatro ou outro equipamento cultural (auditório, blackbox, sala polivalente/modular ou outro espaço, convencional ou não, dedicado à programação artística), cuja função predominante seja a apresentação de projetos de artes performativas e/ou de cruzamento disciplinar e de artes visuais, inclusive cinema e audiovisual.

Contudo, existem requisitos fundamentais para validar esta credenciação que passam, essencialmente, pelas autorizações e regulamentos legais para o seu funcionamento, bem como, a estratégia programática ou uma equipa funcional adaptada às instalações e ao equipamento disponível. 

De igual modo, é requerido que os espaços a credenciar devem ter, pelo menos, dois anos de atividade cultural e artística com programação regular, cuja avaliação, devido à pandemia, não contempla os anos de 2020 e 2021.

Estes são passos fundamentais para poder aceder ao financiamento disponível, na medida em que apenas os equipamentos credenciados, nesta primeira fase, poderão apresentar candidaturas ao concurso de apoio à programação que abre a 27 de setembro. 

Esta é uma política inédita na área cultural, na medida em que, pela primeira vez em Portugal, o Estado irá financiar a programação regular de uma rede nacional de equipamentos culturais na área das artes performativas. 

No caso particular dos Açores, é fundamental que consigamos credenciar os espaços e, por essa via, seja possível o tão desejável (e fundamental) reforço orçamental que nos permitirá uma melhor acção na pluralidade da fruição e da criação artística (regional). 

Através da participação em fóruns de discussão nacional, acompanhei de perto a materialização desta Rede, sobretudo, afirmando a imperiosa necessidade da sua extensão às regiões autónomas, corporizando aquilo que está na sua génese, como “instrumento estratégico fundamental para o combate às assimetrias regionais e para o fomento de coesão territorial no acesso à cultura e às artes.”

Complementarmente, e no âmbito da candidatura de Ponta Delgada (e dos Açores) a Capital Europeia da Cultura 2027, devemos construir as bases para um entendimento alargado, entre municípios e entidades governamentais, por forma a garantir uma coisa aparentemente simples mas que não há forma de acontecer: gerar uma rede regional (mesmo que informal) e fazer circular (internamente) artistas e projectos.

+ Publicado na edição de 12/06/21 do Açoriano Oriental 
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sábado, 5 de junho de 2021

Previsibilidade

Na reunião de peritos, no INFARMED, para avaliação da situação epidemiológica de covid-19, ficamos a saber que 272 pessoas foram infectadas com o vírus depois da vacinação completa e que, deste grupo, 15 tiveram que ser internadas. Felizmente, não se registaram óbitos.

Neste momento, o país tem metade da letalidade da que tinha há um ano, num período em que tem, paradoxalmente, o dobro da incidência registada na mesma altura (2020).

Os efeitos da pandemia mudaram e é razoável assumir, presumo, que parte desta alteração se explica ‘lato sensu’ pelo progresso do processo de vacinação e às medidas de contenção da pandemia.

A vacinação parece conter o processo de contágio dos mais vulneráveis, dá-nos mais segurança e, eventualmente, algum excesso de confiança. Com estes novos dados, fará sentido manter as medidas no seu modo mais restritivo ou devemos alterar os critérios?

Não obstante isto, continuam a existir muitas dúvidas e incertezas em torno da evolução da pandemia, nomeadamente, o tempo da nossa imunidade após a vacinação, a influência das novas variantes (na sua propagação) ou até a eficácia das vacinas.

O exemplo das ilhas Seychelles tem sido amplamente discutido, na medida em que apesar de serem o país com a maior taxa de vacinação em todo o mundo (70%), foram obrigados a impor, novamente, restrições para conter a pandemia.

O tempo nesta, como em outras matérias, não será bom conselheiro, sendo que a urgência das respostas pode traduzir-se em leituras pouco fidedignas e comprometer a resposta científica para responder, por exemplo, à questão: “qual está a ser o real impacto da vacinação?”.

No entanto, há quem defenda novas abordagens, sobretudo, na alteração da “matriz de observação desta doença”, a qual “vai ter de passar obrigatoriamente por um outro patamar que tem a ver com a gravidade e não tanto com a simples contagem de cabeças, a contagem de casos” (Paulo Santos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto - Público, 28/05/21).

Considero que esta deva ser a abordagem a seguir no arquipélago, tal como preconizado nesta reunião do INFARMED, privilegiando diferentes “patamares de desconfinamento” que correspondem à adopção de medidas diferenciadas, numa “estratégia faseada para evitar ter de recuar, para garantir que se ganha liberdade em segurança”.

Obviando o que hoje acontece - num movimento pendular de difícil acompanhamento (no qual passamos de verde a vermelho no espaço de uma semana) - é necessário atribuir previsibilidade à retoma económica e aumentar os níveis de confiança na sociedade.

Os recursos disponíveis para responder às empresas, às famílias e aos trabalhadores independentes (fundamentais e necessários) são finitos e transitórios, pelo que devemos trabalhar no sentido de conferir maior assertividade nas medidas a adoptar, permitindo retomar gradualmente (e em segurança) a actividade económica (no seu todo) e, por conseguinte, a nossa vida colectiva.

+ Publicado na edição de 29/05/21 do Açoriano Oriental 
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