sábado, 24 de março de 2018

Pequenos gestos

Não tenho por hábito utilizar este espaço (público) em benefício de causa própria. Contudo, há assuntos que extravasam o mero âmbito da agenda (cultural) e servem, espero, como alerta, para derrubar barreiras (invisíveis) ou para que, ao menos, se fale deles.

Tema(s) incómodo(s) que a ilha (nós todos, entenda-se) não assume e para os quais reserva uma enorme parcimónia, conservando alguma da indiferença que caracteriza as sociedades pós-modernas (ou aquilo a que convencionou designar da hiper-realidade).

Vem isto a propósito da exibição do documentário “I Don’t Belong Here” de Paulo Abreu, construído a partir de uma peça de teatro com o mesmo nome, da autoria de Dinarte Branco e Nuno Costa Santos, concebida a partir das experiências pessoais dos próprios intérpretes que, oriundos dos EUA e do Canadá, são deportados para os Açores.

Esta peça conseguiu um feito inédito, colocou não actores em palco, partilhando as suas histórias de vida, com uma determinação e uma força que os próprios desconheciam (e que produtores e público testemunharam).

E não estamos a falar de exemplos de sucesso, falamos de percursos familiares disfuncionais, desestruturados, violentos e plenos de dependências.

A coragem destes indivíduos (deportados), no assumir um lado menos esplendoroso da sua existência, foi captado pelo realizador durante um período de cerca de dois anos, gerando cerca de 240 horas de material filmado que, após editado, deu origem a um filme com 75 minutos, estreado na edição de 2017 do Festival Doclisboa, no qual obteve o Prémio Escolas/Prémio ETIC para Melhor Filme da Competição Portuguesa.

Este projecto surgiu de um desafio lançado a Dinarte Branco pelo Observatório dos Luso-Descendentes e contou com o apoio de inúmeras entidades, e de muitas pessoas, sem as quais esta empreitada não teria chegado ao fim.

O processo de produção da peça foi muito difícil, não só em termos humanos e de logística, mas também, em termos de montagem financeira, a qual obteve o apoio decisivo da co-produção da Rede 5 sentidos, uma estrutura informal de programação cultural composta por 11 estruturas culturais, da qual o Teatro Micaelense, faz parte, e que possibilitou a itinerância deste objecto artístico. O qual é, ainda hoje, assumido como referência de boas práticas na produção artística em rede.

Destaco, igualmente, os contributos da Fundação AMI, do Governo dos Açores (Direção Regional das Comunidades e da Cultura), da SATA, do Grupo Bensaude, da Açoreana Seguros e da Associação Novo Dia, sem os quais não teria sido possível financiar esta ideia.

Apesar disto, parte substancial do trabalho associado à conclusão do filme, e de parte significativa do processo preparatório, e do decorrer da peça, é fruto do investimento pessoal de todos os envolvidos, os quais dedicaram a este projecto muito mais do que o mero retorno financeiro, muito espartano, diga-se em abono da verdade.

O subfinanciamento da actividade cultural é um constrangimento anterior à crise, estes tempos de contenção apenas vieram fragilizar, sobremaneira, um sector que resiste, irracionalmente, ao determinismo economicista que dita os dias do presente.

Este projecto é a prova de que é possível acreditar numa sociedade melhor, que podemos todos ultrapassar as dificuldades que nos são impostas e temos, como muito e bem disse Álvaro Borralho, no final da exibição do documentário, de conseguir quebrar com os estigmas paralisantes (e permanentes) associados à realidade do indivíduo deportado.

Esta não é uma tarefa fácil, como se depreenderá, é algo que exige muito do próprio, de alguém que vive num estado de permanente injustiça, pelo facto de ter cumprido com a sua pena e que aqui, no espaço que o acolhe, experiencia uma dupla penalidade, na medida em que se vê coarctado da sua família e do meio que o viu crescer.

A desumanidade associada às leis da emigração faz com que o desânimo, e a descrença, façam parte do dia-a-dia destas pessoas.

Pequenos gestos como este, primeiro a peça de teatro e o filme que se seguiu, são contributos para que a cultura, também ela, funcione, de forma activa, para a transformação social.

Se não acreditasse nisto, não faria o que faço.

* Publicado na edição de 12/03/18 do Açoriano Oriental
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segunda-feira, 12 de março de 2018

Complementaridade(s)

A romaria à Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL) faz parte do calendário da estação, sem que se questione, sobremaneira, a participação da região neste certame.

Uma montra nacional, dividida entre uma componente dedicada a profissionais e outra dirigida ao público que acorre ao Parque das Nações, durante o fim-de-semana, na expectativa de aceder às inúmeras provas de produtos regionais (queijos, vinhos e enchidos) ou participar num sorteio para ganhar uma viagem aérea para o destino da moda.

Todos os anos há uma polémica associada à representação açoriana, este ano não foi excepção.

Apesar do sucesso dos anos recentes, os Açores necessitam de se afirmar, de forma consistente, como um destino creditado e não apenas como uma moda passageira.

O arquipélago é, ainda, um ilustre desconhecido. Isto constitui, no meu entender, uma vantagem. Mas para tal, é necessário garantir a promoção do destino como um todo, e não de nove partes distintas, como alguns parecem querer acreditar.

Ao contrário de outras regiões, os Açores estiveram (re)partidos no complexo da Feira Internacional de Lisboa (FIL) pelo pavilhão 1, onde esteve o stand oficial dos Açores (organizado pela Associação Turismo dos Açores - ATA), e pelo pavilhão 2, onde estiveram a Associação de Municípios da Ilha de São Miguel (AMISM), a Associação de Municípios do Triângulo (Faial, Pico e São Jorge) e os municípios das Flores e Corvo.

Esta luta de protagonistas (e de protagonismo) dita que não importa a (pretensa) escassez de recursos, sendo que a racionalidade dos gastos, neste como em outros casos, não é tida em linha de conta, inclusive, na eficácia associada a uma acção promocional concertada, em que, infelizmente, todos lutam, apenas, por um lugar na fotografia.

Relativamente a esta questão, a dispersão verificada nesta representação, os responsáveis pela promoção turística falam de um “retrocesso”.

Contudo, convém não esquecer que esta proliferação de meios não se extingue apenas na presença na BTL, ela também se verifica nos múltiplos canais (sobretudo online) em que cada qual tenta promover a sua região, seja ela uma ilha (Terceira) ou grupo de ilhas (Triângulo).

Paralelamente à realização da BTL, em que os intervenientes parecem querer investir todas as fichas num única e determinada aposta, parece-me contraproducente que, à semelhança da inexistência de um verdadeiro sentido de união em torno da promoção do destino, todos os eventos e iniciativas de animação turística estejam concentrados na época alta, período que já está, antecipadamente, vendido e que já não dá resposta à procura que, actualmente, tem.

Na ausência de uma estratégia articulada, cada município promove, até à exaustão, as suas festas concelhias e os seus “eventos âncora”, ignorando, na maioria dos casos, que o público-alvo, destas iniciativas, se esgota localmente e não constitui um cartaz suficientemente apelativo, nem seja a razão primordial pela qual os turistas se deslocam aos Açores.

Como é óbvio, existem honrosas excepções, mas continuamos a negligenciar a sazonalidade (novembro a março), pelo que, complementarmente à natureza, disponível todo o ano, é necessário investir nas actividades dentro de portas, nomeadamente, através de uma melhor dinamização da multiplicidade de espaços culturais (ao nosso dispor).

Para tal não basta edificá-los, importa dotar-lhes de meios (sobretudo financeiros), para que os mesmos possam desenvolver, capazmente, a missão que lhes foi confiada. A este propósito destacaria a comunicação da professora Susana Goulart Costa, na conferência de abertura dos III Encontros Daniel de Sá, na qual sinalizou a importância que deve ser dada à valorização do património cultural dos Açores.

Outro aspecto a destacar na experiência turística local, é a necessidade de afirmação da nossa identidade, naquilo que nos diferencia e distingue de outros destinos, recusando qualquer tentativa de homogeneização (e carácter indiferenciado) da oferta. Importa ter isto bem presente, no garante de uma actividade económica que queremos afirmar de forma duradoura (e que não tenha somente um carácter transitório).

Essa garantia começa e termina “cá dentro”, só depende de nós e de mais ninguém.

* Publicado na edição de 05/03/18 do Açoriano Oriental
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