quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Um símbolo de resistência

Num período de profundas mutações nos hábitos de consumo de bens culturais e de lazer, as livrarias (tradicionais e independentes) lutam de forma desigual pela afirmação da sua cota de mercado, o qual não tem em linha de conta a diferenciação da prateleira mas o valor do desconto.

Isto numa semana em que ficamos a saber que encerrou mais uma livraria histórica em Lisboa, a Aillaud & Lellos, no Chiado.

Esta circunstância teve inúmeras repercussões e levou, inclusive, a uma chamada de atenção da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) para a necessidade de implementação de medidas de apoio (urgente) às livrarias ameaçadas de extinção, recomendando a análise dos mecanismos de apoio vigentes em França, exemplo maior nas políticas de difusão do livro.

Nos Açores, o número de livrarias é reduzido e há ilhas que não as têm. Por regra, o acesso ao livro é possível através das bibliotecas públicas (governamentais, municipais ou escolares), de outros espaços comerciais cuja vocação primordial não é o livro e, num número cada vez mais significativo, pela aquisição online.

Felizmente, ainda, existem espaços que mantêm a sua actividade de forma resiliente. Um dos melhores exemplos, entre nós, é a Livraria Solmar que, complementarmente, ao usual lançamento de livros com autores regionais e nacionais, mantém a organização de feiras temáticas e de iniciativas como a dos ‘Livros do Ano’, cujo principal objetivo é dar a conhecer os livros que constituíram a preferência dos leitores (convidados).

E aqui faço uma declaração de interesses, na medida em que fui um dos convidados da edição deste ano.

Tenho uma relação de amizade para com os seus proprietários, sou um frequentador diário da livraria, um espaço de encontros, de tertúlia improvisada, de conversas distendidas, num tempo dado a pressa(s).

A livraria é, igualmente, um campo de ansiedade e contenção, na medida em que ao olhar para as propostas alinhadas na prateleira, no gosto em desfolhar as páginas à minha frente e sentir o cheiro do papel, sei que não vou conseguir ler tudo o que (já) tenho (até final da minha vida).

Compro mais do que leio, é quase compulsivo, gosto de livros e, em Portugal, as edições estão melhores: nas traduções, na impressão, no design e no papel.
A humidade das ilhas deixa (na maioria dos casos) tudo a perder.

Devia ler mais mas, se pensar bem nisso, nunca li tanto como agora. O dia é preenchido a ler, de forma fragmentada (e acelerada).

Este é um fenómeno transversal a (quase) tudo o que fazemos, pessoal e profissionalmente.

O nosso consumo é realizado na diagonal, em formato descartável e de bolso. Vivemos um período de enormes transformações tecnológicas (que ainda só agora começaram) e que ditam (inconscientemente) a forma como nos correlacionámos, por exemplo, com o cinema, a música e o livro.

Passamos do disco, para a faixa e para a playlist do Spotify.

O cinema (em Ponta Delgada é um duplo desafio) passou para a BOX (oficial e pirateada) e as estrelas cinematográficas estão, preferencialmente, na série televisiva.

O ponto de encontro dos amigos passou a ser um grupo no Facebook.

E o livro dá muitas vezes lugar ao artigo na revista, ao jornal ou ao post.

Afirmar o (pretenso) cosmopolitismo de Ponta Delgada passa por olhar a singularidade de espaços como este, pela promoção (consequente) de políticas de apoio à difusão do livro (e da leitura) e pelo enquadramento de uma linha de apoios públicos a esta actividade (que é cada vez menos um negócio e devia ser entendida como um serviço público).

A livraria (Solmar e muitas outras suas congéneres) é, hoje, um símbolo de resistência à voragem do tempo (e do mercado).

* Publicado na edição de 22/01/18 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Ignomínia

Nos Açores, continua a ser necessário defender o investimento (incondicional) na Cultura, na criação cultural e na consolidação de meios físicos e humanos para a sua realização.

O populismo é epidémico, qualquer opinião que veicule o ‘desperdício’ de recursos públicos em prol da acção cultural, por regra, colhe muitos aplausos, muitos ‘likes’ e uma adjectivação menos abonatória para quem vive e trabalha no meio artístico.

Considero que o desconhecimento já foi maior mas continua a existir uma enorme depreciação pelas áreas artísticas.

O cenário é antigo, existem melhorias mas, ocasionalmente, são veiculadas um conjunto de preconceitos ou considerações avulsas, sem rigor, de quem desconhece o que se fez e o que se anda a fazer.

A ideia de que a cultura, ou a fruição cultural, tem apenas como destinatário uma suposta elite, é uma presunção perigosa que faz aumentar o estigma sobre este sector.

Os círculos de públicos associados à fruição cultural tendem a estender-se mas continuam, é certo, a ser preenchidos por uma minoria da população, sendo que o trabalho das instituições culturais passa por fazer chegar a cultura e um cada vez maior número de pessoas.

E não nos iludamos, a Cultura continuará a ser, se assim a considerarmos, um ‘privilégio’ de alguns. O desejo de futuro é permitir que este processo se dilua e os diferentes públicos possam encontrar o seu espaço. E ele existe.

Este trabalho não se baliza por uma fórmula de excel, nem se realiza de um dia para o outro.

Esta acção exige um trabalho contínuo, objectivos a curto e médio prazo e de ser consistente e, sobretudo, consequente.

Não sou adepto do fazer por fazer, os resultados são importantes, não menosprezo os quantitativos, são eles que ditam muito do que hoje fazemos, mas valorizo os quantitativos, mais difíceis de medir e de defender, num tempo em que tudo é mensurável.

A acção cultural nas áreas ditas tradicionais (música erudita, artes performativas, por exemplo) não é compaginável com a produção em série. Esta foi uma ideia veiculada nestes anos de crise, numa associação às indústrias culturais e criativas, facto que não corresponde ao que realmente se passa ou cujo papel não é, nem pode, ser confundido.

A Cultura tem de ser entendida como essencial, a par de outros sectores vitais (Educação), para o crescimento (desenvolvimento) da nossa comunidade, pelo que não pode ser medida, apenas, em termos economicistas. Fazê-lo é redutor.

O problema é que continuam a existir vozes que tendem a menosprezar o trabalho realizado pela comunidade artística, ignorando que este trabalho só é tornado possível, na sua esmagadora maioria, pela pulsão de quem ama o que faz, sem dele retirar grandes rendimentos e investindo muito do seu tempo pessoal (e familiar).

Olhar a Cultura apenas como uma forma de deleite de uma imensa minoria, é desconhecer a realidade que o rodeia e o intenso percurso percorrido por artistas e instituições.

No espaço público, continuamos a ser muito poucos na defesa da Cultura e do necessário investimento para a sua prossecução.

É tempo de repudiarmos toda e qualquer opinião mesquinha e falaciosa em torno do universo cultural.

O combate às desigualdades sociais também se faz por defender o acesso ilimitado aos bens culturais.

A inclusão (social e cultural) não se faz por exclusão de partes.

Defender o seu contrário, é uma ignomínia.

* Publicado na edição de 15/01/18 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Actuar (excepcionalmente)

O (re)início de uma nova temporada convoca a balanços, ao rearrumar da secretária e ao folhear de uma nova agenda.

Na arte de bem procrastinar, adiamos tudo até mais não e recusamo-nos a admitir o desacerto.

Na assumpção da (ir)responsabilidade, reencaminhamos o assunto, na vã esperança que alguém possa ler o email, identifique a origem do problema e actualize o perfil para o modo agir.

O Rui Tavares escreveu, na sua crónica diária, algo que baliza muito daquilo que hoje vivenciamos: “Às vezes o nosso trabalho mais importante é ver o óbvio. Às vezes, o trabalho mais difícil é admiti-lo. Ver o óbvio parece demasiado fácil. Admitir o óbvio parece demasiado simples. E nós preferimos, por múltiplas razões pessoais e sociais, passar por complexos e difíceis”.

O óbvio não significa, forçosamente, uma simplificação, nem uma menorização, muito menos, a sua banalização.

Um exemplo - deste efeito de neutralização - são os noticiários que passaram a ser um sucedâneo em horário nobre (e a tempo do jantar) de um ‘reality show’, na medida em que o alinhamento dos acontecimentos tem de ser estimulado, carecendo de um carácter sensacionalista, persecutório ou extraordinário. À semelhança da ida ao supermercado, a rotina quotidiana do ‘agenda setting’ passou a ser um aborrecimento, uma chatice.

Por estes dias, li uma entrevista a Naomi Klein, na promoção do seu último livro Dizer Não Não Basta (Relógio D’Água, 2017), em que a autora afirmava isso mesmo: “as pessoas vêem as notícias da mesma maneira que vêem ‘reality shows’. Vêem-nas como entretenimento, causam dependência, criam expectativa como as Donas de Casa Desesperadas” (Público, 29.12.17).

Uma síntese (quase) perfeita da causalidade sem nexo, num período conturbado da nossa existência global, onde a informação passou a ser ruído ou um contributo activo para o permanente desnorte em torno da próxima vítima, catástrofe ou escândalo.
 
No entanto, o poder de atracção é, simultaneamente, paradoxal, num tempo em que se consomem menos jornais pela via tradicional, qual a solução para combater a transferência de audiências (e receitas publicitárias) para o online?

Bem sei que esta pode ser entendida como uma visão pessimista mas não encaro a realidade (presente) com nostalgia, nem como uma inevitabilidade, opto por imprimir algum pragmatismo na minha utopia.

O tempo, como as relações sociais (pessoais e profissionais), passaram a ser encaradas em ‘fast forward’, reduzidas a um prazo de validade. Andamos agarrados a algo que não sabemos bem o que é mas cujo objectivo (per)seguimos, de forma mais ou menos inconsciente, abandonando o que verdadeiramente importa.

Mal comparando, é como preconizar a solidariedade em prol dos mais desfavorecidos à distância do ecrã, em detrimento do vizinho idoso, solitário e carenciado que, ostensivamente, negligenciamos.

As acções de beneficência passaram a ter uma contabilidade em ‘selfies’, ‘likes’ e na partilha, sem questionar, da caridade alheia. Quem (realmente) ajuda e dedica o seu tempo em prol de quem mais necessita, será que o faz a troco de uma fotografia, da notícia no jornal e/ou do reconhecimento público? Provavelmente não, mas não faltam candidatos em sentido inverso.

O ano que passou foi a prova da incapacidade nacional em reconhecer a sua participação na acção do Estado, essa entidade sem rosto que todos culpam, na procura incessante por um bode expiatório para as suas insuficiências.

Esquecemo-nos, vezes demais, que o Estado somos (todos) nós. É bom que possamos actuar - excepcionalmente, sem carácter de excepção - melhor.

Simples desejos para o ano que, agora, se inicia.

* Publicado na edição de 09/01/18 do Açoriano Oriental
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