quinta-feira, 14 de maio de 2020

Cultura (em tempo de pandemia)

O confinamento social a que estamos sujeitos tem revelado, simultaneamente, o melhor e o pior que há em nós.

Temos assistido a um conjunto significativo de iniciativas solidárias para acudir aos menos protegidos, cuja precariedade é mais evidente no modelo económico (e social) vigente, o qual fragiliza quem está mais vulnerável.

Por outro lado, proliferam as teorias da conspiração e a partilha de factos falsos e erróneos que disseminam o ódio (e o medo) pelo outro.

A incerteza dos dias alimenta a oportunidade dos populistas que navegam no éter da timeline à procura de um lugar no pódio do soundbite, no qual “as redes sociais, espelho ampliado e distorcido da realidade, estão cheias de sinais de angústia e ressaca” (Cristina Fernandes, Revista Electra nº 8).

Este não é o tempo de procurar inimigos sem rosto, nem reivindicações anacrónicas destituídas de sentido e representatividade. E com isto não estou a dizer que está tudo bem. Vivemos numa democracia, conquistamos o dever de ser críticos e de manifestar a nossa opinião com absoluto sentido de responsabilidade.

Em dias de pandemia passamos (ainda) mais tempo em redor dos ecrãs, inertes à luz que emana dos vários dispositivos ao nosso dispor.

A sedução é evidente. Perante o imobilismo passamos a socializar, quase em permanência, em formato digital.

Mesmo os utilizadores mais relutantes renderam-se às evidências. E não se iludam, há mesmo um admirável mundo novo que veio para ficar.

Os números dos serviços ‘on demand’ têm atingido valores nunca dantes atingidos e que só se explicam pelo aumento exponencial do consumo de conteúdos (comunicações) em casa.

A título de exemplo, o Barómetro de Telecomunicações da Marktest (28/04/20) indica que são, agora, mais de dois milhões os portugueses que subscrevem plataformas de entretenimento em streaming. E que registou, por exemplo, entre Fevereiro e Abril, mais 800 mil subscritores de serviços como a Netflix ou a HBO.

Este ‘novo normal’ tem levado a concessões sem paralelo na indústria cinematográfica, sendo possível assistirmos, na cerimónia dos Óscares do próximo ano, à nomeação de filmes que foram exibidos (apenas) em ‘streaming”.

Resta saber se esta é uma concessão temporária ou se veio para ficar. Só o mercado o dirá.

Apesar do beneplácito pela profusão da disponibilização de conteúdos culturais/informativos online, há que sublinhar que existem pessoas por detrás do ecrã e que o produto do seu trabalho faz-nos “sentir vivos” mas cuja profissão - à semelhança de muitos outros sectores essenciais que têm sido valorizados por estes dias, é “mal renumerada, com pouco reconhecimento social, mas também (…) alvo de aplausos.” (Vitor Belanciano, 03/05/20).

É importante que a emergência deste estado de coisas não conduza à calamidade do sector cultural, um dos primeiros a fechar e, muito provavelmente, um dos últimos a abrir, apesar do Plano de Desconfinamento apresentado esta semana. É uma área resignada a sucessivos “financiamentos insuficientes” (Cíntia Gil, 10/04/20), pelo que importa, por isto, não cair na tentação de aplicar um corte (cego) nos apoios aos artistas e no financiamento das instituições culturais.

O futuro da cultura em tempo de pandemia dependerá, também, da prioridade que lhe for consignada.

* Publicado na edição de 04/05/20 do Açoriano Oriental
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domingo, 3 de maio de 2020

Atenção (e importância)

Calendarizar o futuro próximo (da programação cultural) é uma tarefa inglória (e angustiante), perante a incerteza dos dias e de uma realidade que já não será o que era.

Na semana passada a Presidente da Comissão Europeia - Ursula Von der Leyen, apresentou um "Roteiro europeu conjunto para o levantamento das medidas de contenção da covid-19", que define um conjunto de princípios orientadores para a retoma gradual da atividade económica.

Ficamos a saber que existem previsões para múltiplos cenários mas não iremos passar à “normalidade” de um dia para o outro, a aglomeração de pessoas será realizada de forma faseada, evoluindo progressivamente, existindo a intenção de privilegiar a reabertura de escolas e universidades, lojas, cafés e restaurantes. Para o final, ficará o retomar dos eventos públicos (festivais e concertos, por exemplo).

Ninguém questionará, acredito, este conjunto de recomendações mas não deixa de ser simbólico que a Cultura - ou tudo o que directa e indirectamente está relacionado com actividade artística - surja neste alinhamento (e noutras situações) na última posição.

Foram um dos primeiros serviços a ser encerrados e serão, muito provavelmente, os últimos a reabrir.

Neste período de paralisação (que todos compreendemos e concordamos), como será o acesso do público a salas de espectáculo e recintos fechados? São questões que, para já, carecem de mais dados (e tempo) para que se possa ter ou dar um resposta assertiva.

O sector cultural (e criativo) é frágil e demasiado fragmentado (nas suas variadas formas de actuação) mas é consensual que a Cultura será, neste período, um dos sectores mais afectados pelas medidas de contenção devido, em particular, ao encerramento de teatros, salas de concertos e outros espaços públicos.

A resposta pública tem apontado várias medidas de apoio para mitigar a perda de rendimento dos profissionais mas é necessário ter em linha de conta a especificidade de um sector económico com regras e dinâmicas próprias, nem sempre enquadradas com um contrato de trabalho, onde a maioria dos trabalhadores é independente, com cariz precário e intermitente, e sem o garante da protecção social que se exige num tempo como este.

Os artistas (técnicos e outros trabalhadores do sector cultural) não são indispensáveis para o combate à pandemia mas o resultado do seu trabalho tem sido vital nestes dias de confinamento social.

Neste período transitório é necessário assegurar que são tomadas medidas que abonem a sobrevivência do sector cultural num cenário pós-covid.

Continuam a existir muitas perguntas sem respostas mas a percepção dos profissionais deste meio é de que “a relação do público com os espectáculos vai sofrer uma mudança”. A começar pela bondade das actuações online, pois “ao contrário de toda a economia, os dividendos e lucros das plataformas digitais estão a subir”. (Pedro Wallenstein, presidente da GDA, 10/04/19).

Este parece-me um dado que importa estudar e analisar em profundidade, qual o impacto, por exemplo, na indústria dos espectáculos de toda esta exposição de conteúdos online?

Esta tem sido a solução encontrada por muitos artistas e produtores impedidos de actuar em espaço público. Fazem-no agora (gratuitamente) nas suas plataformas online.

A questão que todos colocam é a de “não é claro o modelo de negócio capaz de monetizar este tipo de eventos. (…) Como emprestar sustentabilidade e rentabilidade a estes concertos à distância?” (Miguel Cadete, 16/04/20).

A resposta europeia ao sector cultural tem sido, ela própria, desigual, com uma grandeza e impacto directamente proporcional à sua latitude.

Neste sentido, seria importante não fragilizar, sobremaneira, e de forma fatal, um sector que procura ser reconhecido pelo Estado como merecedor da atenção (e importância) que (aparentemente) tem sido dada por todos os que estão (agora) em casa.

* Publicado na edição de 20/04/20 do Açoriano Oriental
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