terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A tradição (do amanhã)

No passado dia 23 de novembro, o Ministério da Cultura, através do Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais (GEPAC), abriu formalmente o convite para a apresentação de candidaturas para a representante portuguesa a Capital Europeia da Cultura em 2027.

Neste momento, temos um conjunto significativo de municípios que já manifestaram a sua intenção de se candidatar - Aveiro, Braga, Coimbra, Évora, Faro, Funchal, Leiria, Guarda, Oeiras e Viana do Castelo -, sendo que, na maior parte deles, já existe uma estrutura a trabalhar no projecto há, pelo menos, dois anos.

Portugal já recebeu o título de Capital Europeia da Cultura por três ocasiões, Lisboa, em 1994, Porto, em 2001, e Guimarães, em 2012. Em qualquer um destes casos, é inegável o salto qualitativo que a organização deste desafio, deu à cidade e à região que o acolheu, com claros benefícios na dinamização das estruturas criativas locais e na reafirmação da sua importância no mapa cultural, nacional e internacional. Para além, como é óbvio, dos benefícios derivados na dinamização económica, quer por via do incremento do turismo cultural, quer pela valorização patrimonial associada a um processo de revitalização urbana dos seus centros históricos.

Apesar de, em tempos idos, Ponta Delgada ter manifestado a intenção de apresentar uma candidatura, e desta estar prevista no seu Plano Estratégico de Desenvolvimento 2014-2020, desconheço se existe algum processo a decorrer e se estão, porventura, envolvidos outros municípios da região. O que sabemos é que, neste momento, a um ano do prazo desta candidatura, o tempo corre a nosso desfavor, sendo que este é um processo moroso marcado por diversas fases de avaliação e pré-selecção e cuja decisão final só será conhecida, expectavelmente, no final de 2022.

Num momento em que a cultura está, na esmagadora maioria das suas expressões, suspensa por força maior, considero que este objectivo deveria servir de movimento catalisador para repensar o sector e capacitá-lo, de uma vez por todas, como elemento fulcral no designado desenvolvimento sustentado, integrado e transversal, desta região.

Esta intenção pode, e deve, transportar um carácter utópico subjacente à própria candidatura, uma vez que este acontecimento não se extingue no acolhimento de iniciativas nas infraestruturas requalificadas ou geradas para a apresentação das propostas programadas.

Pela nossa dimensão, à semelhança de um projecto idealizado em 2010, esta realização deverá estar alicerçada na região como um todo ou estar pensada, de forma mais pragmática face ao calendário, à escala da ilha.

O carácter diferenciador do posicionamento geográfico (ultra)periférico, sedimentado pela confluência cultural gerada pelo encontro de culturas, que aqui se unificaram, será motivo mais que suficiente para congregar a comunidade artística e construir uma sólida candidatura.

Mais do que um mero instrumento de promoção turística, que, também, o é, esta ambição será, sobretudo, uma forma de reposicionamento daquilo que queremos ser no futuro, de revalorização das idiossincrasias, muitas das vezes motivo de discórdia, mas que nos definem como comunidade.

Por estes dias, o apoio à cultura passou à condição de emergência. A contemporaneidade, hoje, será a tradição do amanhã.

+ Publicado na edição de 11/12/20 do Açoriano Oriental 
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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

A Cultura é segura

O aumento de casos de covid-19 na região fez regressar o receio de um novo confinamento, o que não é desejável, e ninguém, digo, quer que aconteça.

Não obstante, com a proliferação das cadeias de transmissão, inevitavelmente, com maior incidência em São Miguel, foi implementado um conjunto de recomendações que restringem a actividade de múltiplos sectores, todos eles em luta permanente contra as enormes adversidades e contingências a que as medidas sanitárias obrigam.

Nos Açores, para salvaguarda da saúde pública, foi decidido que as actividades culturais, promovidas e acolhidas por instituições públicas, deviam ser suspensas até 30 novembro.

Em território continental, apesar da situação epidemiológica estar distante daquela em que nos encontramos – quer nos números, quer na pressão exercida sobre o sistema de saúde –, a programação cultural tem sido mantida e adaptada às limitações inerentes, por exemplo, ao estado de emergência declarado, nomeadamente, com as alterações nos horários de início dos espectáculos, para respeitar o recolher obrigatório, que vigora em numerosos concelhos do país.

A defesa da saúde (pública) tem sido uma prioridade do governo que agora cessa funções e será, com certeza, do que lhe irá suceder.

Respeito as decisões que têm sido tomadas, mas questiono a pertinência de encerrar um sector que tem sido fortemente fustigado e limitado em todo este processo, quase sem alternativas de manutenção da sua actividade, o qual cumpre com todas as normas sanitárias impostas, desde o distanciamento físico, à higienização dos espaços e ao uso obrigatório de máscara, durante todo o tempo em que decorre um espectáculo. Qual a diferença que assiste à abertura de uma sala de espectáculos, de um museu ou de um restaurante? A segurança com ou sem máscara?

Com isto não procuro colocar em confronto sectores da economia – todos procuram manter a sua actividade da melhor forma possível, com o intuito de chegarem com vida à outra margem, num período pós-covid.

Mas, a cultura não pode ser encarada como dispensável, nem o encerramento de uma instituição cultural deve ser entendido como normal.

A criação artística é, e tem sido, essencial neste ano atípico, que marcará, indelevelmente, a(s) nossa(s) vida(s), fazendo com que a negritude dos dias possa ter um horizonte de esperança.

Importa, por isso, mais do que nunca, continuar a promover o acesso às artes, ao património e à cultura, seguindo, e fazendo cumprir, todas as orientações emanadas pelas autoridades de saúde.

Este é o tempo de apoiar (permitindo o trabalho) quem vive e trabalha na cultura, nas artes e no património, encarando este universo como uma necessidade vital, como parte integrante e contributiva para o tecido económico e social, e não como uma matéria indiferenciada de que podemos prescindir.

Na luta contra a indiferença e a menorização com que, por regra, a cultura é encarada, importa frisar o seu papel como elemento nuclear na educação da sociedade como um todo e no fomento de um exercício complementar para alcançarmos, desejavelmente, uma cidadania mais esclarecida, mais responsável e que melhor interprete as dinâmicas sociais da comunidade onde se insere.

Por estas razões, e por todo um conjunto multifacetado e alargado de áreas artísticas e profissionais, é importante afirmar que a Cultura é segura.

+ Publicado na edição de 13/11/20 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A festa da democracia?

No rescaldo das eleições regionais, uma parte da solução governativa para os Açores é, agora, decidida, aparentemente, em Lisboa, como terreno (fértil) para a experimentação de (futuros) planos governativos (alternativos) no todo nacional. 

 O resultado eleitoral deu, inequivocamente, a vitória ao Partido Socialista (muito embora sem a maioria de votos obtida anteriormente). 

Este dado não terá constituído (propriamente) uma surpresa para Vasco Cordeiro, político acima de qualquer suspeita, em particular, pela preocupação manifestada, antes e durante a campanha eleitoral, no apelo à participação cívica e na procura de estabilidade governativa perante os tempos desafiantes que atravessamos e os (enormes) desafios de futuro (gerados pela pandemia). 

Maiorias absolutas são, nos dias que correm, uma (a)normalidade democrática, em particular, num tempo disruptivo como o que hoje experienciamos, onde a fragmentação social e económica passou a apresentar (paradoxalmente) uma clivagem mais acentuada. 

Por (de)formação académica privilegio a leitura qualitativa dos números, em detrimento da esterilidade quantitativa, a qual tem ocupado, sofregamente, alguma análise política na procura de interpretar o livre arbítrio dos eleitores. 

O xadrez parlamentar na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores nunca foi tão colorido e isto, sim, deve ser celebrado, contrariando a ideia de que a democracia tem estado suspensa ou a de que foram estas as eleições que vieram “libertar” os Açores (seja lá o que isso significa). 

Por estes dias, importa recordar que foi por iniciativa do Partido Socialista que foi introduzido na lei eleitoral para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, o Círculo Regional de Compensação, o qual tem permitido uma maior equidade na distribuição de votos (no todo regional), aumentando, por este mecanismo, as possibilidades de pluralidade na representação parlamentar, como agora, uma vez mais, se comprova. 

 Assim como, foi, igualmente, por iniciativa do Partido Socialista, introduzida a limitação dos mandatos de Presidente do Governo Regional (para um máximo de três), um presidente independente para o Conselho Económico e Social e, mais recentemente, o Voto antecipado por Mobilidade. 

A nova composição do parlamento regional dará lugar a um conjunto de novas vozes do espectro político, reflexo imparável da rapidez (crescente) das transformações sociais que afectam todas as esferas da nossa vida colectiva. 

O Partido Socialista tem o dever de liderar a formação de um novo governo, interpretando, responsavelmente, os resultados eleitorais, agregando, de forma estável e consistente, um conjunto abrangente de vontades políticas. 

Contudo, existem valores com os quais não podemos estar de acordo, nem podem ser ultrapassados, sobretudo, aqueles que ignoram a autonomia regional, depreciam as instituições regionais, alimentam o populismo, promovem a calúnia e o reacionarismo da extrema-direita. 

Um acordo ou parceria com uma força política com este tipo de fundamentos significa, efectivamente, alienar um património construído, por muitas gerações de açorianos, ao longo dos últimos 45 anos. 

A festa da democracia? Sim. Mas esta festa (com estes convidados) não é minha.*

* Frase livremente adaptada de um texto de Milan Kundera (“Um Encontro”, editora D. Quixote, 2011).

+ Publicado na edição de 30/10/20 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Ignorada

O Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas - uma das mais importantes instituições culturais dos Açores - está a ser o palco dos debates na RTP-Açores para as eleições regionais de 25 de outubro, com a presença dos cabeças de lista e de representantes dos partidos que concorrem à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores. 

O espaço é de Cultura, mas a sua presença é evidentemente ignorada pela maioria dos participantes, como quase sempre o é, cumprindo, como habitualmente, uma quota simbólica (e minoritária). 

Este facto não constitui, propriamente, uma novidade. 

Continua a existir um enorme desconhecimento, aliado a uma falta de reconhecimento, acrescido de um sentimento depreciativo (e menorização) sobre quem vive e trabalha no sector cultural. 

A Cultura continua a ser entendida como um adorno e uma manjedoura de uns subsídio-dependentes que vivem (mal) à custa do sistema. 

Por estes dias, escrevem-se coisas como esta: “Um povo que mal se conhece, arrisca-se a ter ideias erradas e fantasiosas sobre si próprio, tem dificuldade em definir o futuro, recebe menos bem e fica nas mãos de quem aparecer” (sim, está num manifesto eleitoral de um partido político). 

Criou-se o mito de que a Cultura deve ser proteína para turista e que temos uma indústria (!) para alimentar. Como se o nosso devir colectivo estivesse dependente (apenas) do turismo, no qual os residentes são convidados a comparecer num casting de representação para um postal ilustrado em tempo real. 

Subsiste um enorme equívoco (colectivo) sobre este assunto. 

A ideia que preconizo para o sector cultural assenta num pressuposto que se traduz de forma simples: Cultura é sinónimo de criação artística, não é animação turística. 

O futuro do sector cultural exige um caminho profissionalizante, no qual não podemos tratar de forma igual o que é diferente, “ciente da importância da aposta na formação de públicos, na promoção da criatividade junto dos mais jovens, e no apoio à formação e à profissionalização dos jovens criadores dos Açores” (plasmado noutro contributo eleitoral). 

Podemos ter as melhores ideias para projectos (e iniciativas), mas, sem o devido (e necessário) reforço orçamental, estas de pouco ou nada servem. 

E não existe mercado para produtos que não são produzidos em série e cuja pesquisa, trabalho, experimentação e risco não são compagináveis com a venda a retalho. 

No contexto histórico actual é fundamental resistir contra quem tem um discurso anti-cultura, não raras vezes, realizado por quem diz que nada acontece mas que, paradoxalmente, nunca comparece nas múltiplas iniciativas que preenchem o profícuo calendário cultural. 

No radicalismo do tempo (presente) não se salva nada, nem ninguém, vivemos num espaço (público) polarizado cuja toxicidade está impregnada de ressentimento, “fomentando o sentimento anti-democrático e anti-político” (António Guerreiro, 25/09/20). 

E neste tempo (novo), com o carácter disruptivo gerado pela pandemia, a cultura depende, sobretudo, das instituições públicas. Os apoios parecem nunca ser suficientes mas sem os que existem estaríamos, garantidamente, pior.

* Publicado na edição de 02/10/20 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Viver (Açores)

O melhor ano de sempre! 

Foi a resposta (surpreendente) que obtive da funcionária de uma empresa de animação turística - numa das nossas reservas da biosfera - à pergunta sobre o desempenho da actividade em ano de pandemia. 

O incremento turístico durante o mês de Agosto, nas ilhas mais pequenas do arquipélago, superou as melhores expectativas. 

Este facto deveu-se, em larga medida, à forte adesão ao programa ‘Viver os Açores’, cuja implementação levou muitos (turistas) residentes a ilhas que não fazem parte das suas habituais opções para férias. 

E por este ter sido dado como um “ano perdido”, a maior parte dos serviços de apoio à actividade turística, nestas ilhas, não tiveram mãos a medir para a procura inusitada a que foram sujeitos. 

Um tempo extraordinário exige um grau de intervenção (preparação e antecipação) que vá para além daquilo que seria expectável. 

Assumir que a retoma da economia terá o mesmo desempenho (e retorno), num contexto como aquele que experienciamos, é negar (ostensivamente) o impasse em que o mundo está mergulhado. 

A reabertura da economia não trará (nem trouxe) a mesma resposta dos consumidores, existindo uma natural retracção por parte de quem viaja, sendo certo que enquanto não existirem soluções com um carácter definitivo em termos de saúde pública, não voltaremos, de um dia para o outro, aos dois dígitos de 2019

Até lá, terá de existir uma enorme capacidade de adaptação e resiliência, por parte de indivíduos, empresas e estado, por forma a mitigar as contingências com que nos confrontamos. 

Ao contrário do que assistimos na crise financeira (2008), o sector mais afectado não é, neste momento, a construção civil mas o dos serviços, sobretudo, aqueles relacionados com a actividade turística, da restauração à animação turística, da hotelaria à organização de eventos. 

Este é um ano excepcional em todas as dimensões da nossa vida colectiva, daí que, talvez, seja este o tempo (certo) para reflectirmos sobre o modelo de desenvolvimento, social e económico que temos. E, com uma boa dose de razoabilidade, planearmos estrategicamente sobre aquele que queremos para o futuro destas ilhas. 

O qual não está circunscrito (apenas) aos desafios e contrariedades que elas representam mas, sim, nas possibilidades que podem proporcionar, nomeadamente, como laboratório (à escala certa) para novas formas de coexistência sustentável. 

O programa ‘Viver os Açores’ teve (e tem) o mérito de colocar os açorianos a olhar para as outras ilhas do arquipélago como opção turística, em detrimento de outros destinos, muitos deles, arquipelágicos, noutras latitudes e com outra qualificação da oferta. 

Não deixa de ser paradoxal que assim seja mas tendo em conta o sucesso da iniciativa, considero que ela deva ser uma aposta durante a chamada época baixa, de modo a funcionar como factor atenuante da sazonalidade, incentivando os residentes à realização de umas miniférias (cá dentro) durante o inverno.

Esta iniciativa responde ao que defende António Costa Silva no seu documento "Visão Estratégica para o Plano de Recuperação 2020/2030", na medida em que para ele: “temos uma Administração Pública muito orientada para a emissão de pareceres e pouco orientada para a resolução dos problemas”. E insta, desde já, a “mudar essa cultura". 

É este sentido de urgência que a população espera dos serviços públicos (locais, municipais, regionais ou nacionais), na priorização da sua acção em mecanismos de resposta às dificuldades inerentes a esta crise.

* Publicado na edição de 18/09/20 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Como pode e deve o dinheiro que Portugal vai receber da União Europeia ser aplicado?





















Os fundos europeus ao dispor de Portugal para a década 2020/2030, e para os Açores, em particular, assumem, neste período, um carácter vital e uma urgência (acrescida), por forma a enfrentar a imperiosa recuperação económica gerada pela crise pandémica.

A economia global implica uma competição de igual para igual, não vamos lá com lamento (e idiossincrasia) mas com conhecimento, pelo que urge incrementar o investimento na melhoria do acesso, qualidade e modernização da educação (e formação profissional).

A cultura (em estreita articulação com a educação) deve substituir o hardware pelo software através de um processo de mediação para o conhecimento e fruição artística, com o intuito de gerar uma cidadania mais esclarecida, mais crítica e, nesta medida, mais participativa (democraticamente).

A Universidade dos Açores assume, neste propósito, um papel determinante. Contudo, tem de (saber) sair dos muros da academia para participar (activamente) no desenvolvimento da sua região, em áreas onde se pode distinguir (positivamente) das suas congéneres, principalmente, pela situação (privilegiada) que ocupa na economia do mar, ambiente e alterações climáticas.

Apesar de estarmos no centro de tudo (e em simultâneo, no meio de nada), devemos capitalizar os benefícios ambientais endógenos para afirmar os Açores como um exemplo (global) de boas práticas na gestão do território e da sustentabilidade energética.

A pegada ecológica dos produtos que produzimos (agrícolas e industriais) terá um peso cada vez maior na consciência social dos consumidores, pelo que urge alterar práticas, transformando o quantitativo em qualitativo (através da atribuição de uma personalidade exclusiva à nossa produção de pequena escala).

Os transportes (passageiros e mercadorias) são vitais para a nossa economia mas devemos pugnar por inverter a nossa balança comercial, exportando saber (ciência, digital e intelectual) e produtos de valor acrescentado (raros e exóticos).

É fundamental agregar investidores e marcas compagináveis com o destino turístico que afirmamos ser, nunca através de parcerias de baixo custo que nos vendem como um produto indiferenciado.

Esta é uma oportunidade que implica o futuro de várias gerações, pelo que será fundamental, a bem de todos, responsabilidade (e critério) no uso deste dinheiro.

* Publicado na edição de 17/08/20 do Açoriano Oriental

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

A natureza (desigual) do que está em jogo

Num tempo em que se confunde Cultura com animação turística à sombra de um drink, retomamos as nossas rotinas sob a égide da normalidade (possível), onde todos os cuidados são poucos na prevenção contra a disseminação da pandemia.

Para determinadas pessoas, o desconfinamento significa(rá) que tudo está bem (e o pior já passou), existindo, acredito, um excesso de confiança pelos resultados obtidos na contenção dos números do vírus. O controle de passageiros à chegada (aos Açores) faz com que (felizmente) não existam muitos casos novos, a vida social é realizada, na maior parte das vezes, ao ar livre na esperança (cega neste mito urbano) que o calor neutralize o vírus ou, como já ouvimos, que “isso não pega em gente nova” (RTP-Açores, 25/07/20).

O sector do turismo será aquele que (por estes dias) acusa com mais intensidade o decréscimo abrupto da actividade, depois de anos a subir a dois dígitos. Era expectável um abrandamento e a estabilização do crescimento. Mas nada, nem ninguém previu um evento desta magnitude.

De forma paradoxal, substituímos a discussão sobre a pressão da amálgama de turistas, pela urgência do seu regresso, principalmente por parte de quem deles vive. Perante o carácter extraordinário deste abalo económico, nesta e outras áreas complementares, não existirá outra solução que não o apoio estatal (e regional) para esta suspensão temporária de muitas empresas que não conseguem trabalhar (ou cuja viabilidade não é possível com o actual volume de negócios).

A pandemia chegou sem aviso prévio, pelo que não é plausível conceber uma reabertura nos moldes em que ela existia, com a agravante desta crise ser global, ao contrário da que a antecedeu, e com repercussões gravosas, sociais e económicas, nos principais mercados emissores.

Este tempo tem vindo a agudizar as desigualdades pré-existentes (à Covid-19), revelando a sintomatologia autocentrada de uma sociedade que vive (apenas) para si própria, a qual tem sido incapaz de enfrentar “sem desespero” o futuro, em particular, quando este se apresenta “ameaçador e incerto” (Gilles Lipovetsky, A Era do Vazio).

A tendência crescente de comunicarmos (online) com quem partilha das mesmas opiniões (e com direito a filtro do algoritmo) tem degradado “aspectos fulcrais do ecossistema relacional e social como a tolerância, a abertura, a reciprocidade, a paciência-espera, a deferência e responsabilidade, sem os quais não pode haver verdadeira empatia, democracia e humanidade” (Paulo Pires, 21/7/20).

A humanização dos nossos actos e de quem (supostamente) administra a justiça em nome do povo, não me parece compaginável com a extrapolação (anacrónica) de uma situação extraordinária resultante de uma ocorrência circunstancial (e de absoluto gozo egoísta).

Tal como referiu, e bem, Paulo Simões no seu último editorial (Açoriano Oriental, 02/08/20): “Afirmar que o uso obrigatório de máscaras ou que o isolamento profilático são medidas castradoras das liberdades individuais é ofender a memória de todos os que efetivamente se viram privados dos seus direitos, liberdade e garantias nos tempos da ditadura! É ofender todos os que ainda hoje vivem sob o jugo de regimes autoritários ou ditatoriais, onde, aí sim, é preciso pedir licença para respirar. A lei é para ser cumprida, mas a Lei é “um ser vivo” que cresce, evolui, adapta-se. Esgrimir o argumentário legal para justificar o incumprimento de normas cujo objetivo único é a proteção de todos é não querer compreender a natureza do que está em jogo.

O que é estranho, é que a compreensão de tudo isto seja, aparentemente, estranha para quem tem o dever de o superintender.

* Publicado na edição de 07/08/20 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Desvinculação (unilateral)

O aumento (exponencial) da actividade turística (no país e na região) atenuou os efeitos devastadores da crise financeira de 2008, gerou emprego e, concomitantemente, riqueza.

Nestes últimos cinco anos, assistimos ao incremento (sem paralelo) de um sector estigmatizado pela sazonalidade, cuja evolução (recente) averbou o inimaginável: dores de crescimento perante o fluxo (incondicional) da oferta.

Fruto do investimento realizado na promoção (externa), o arquipélago passou a ser referência em múltiplas publicações internacionais e o exemplo para as melhores práticas de gestão ambiental.

Nem tudo será perfeito, como nada o é. Contudo, será importante valorizar o que outros sinalizam como diferenciador, na medida em que nos flagelamos com as nossas insuficiências (à espera que alguém nos resolva o problema), revelando alguma relutância em dar boa nota daquilo que temos de positivo.

O investimento externo é (hoje) premente, através do qual assistimos à multiplicação de projectos qualificadores da oferta turística, um pouco por todas as ilhas dos Açores.

Se antes da pandemia discutíamos o aumento da carga turística em locais sensíveis, ou a nidificação de projectos hoteleiros sobredimensionados e descontextualizados da realidade geográfica, social e económica, no momento actual, o dilema reside no reduzido número de turistas que aporta à região, com tudo o que isto implica, a começar pela dificuldade em resistir ao inverno, sem que haja um verão que o compense.

Este é um tempo extraordinário e paradoxal, o que hoje é verdade, amanhã será desmentido.

O confinamento à luz do(s) ecrã(s) fez as pessoas acreditar num mundo melhor, mais justo e solidário.

O regresso à realidade suplantou a intenção, no qual voltamos à(s) rotina(s) e à determinação em manter tudo como era dantes.

A cada dia que passa verificamos que não é, nem será assim. A inevitabilidade das evidências leva-nos a resistir (e a ignorar a mudança).

Neste processo de transição, o estado e as instituições públicas são vitais para a manutenção de sectores importantes da nossa vida colectiva (Cultura, inclusivamente). E para - no meio deste mar de incerteza(s) - transmitir confiança às populações, garantindo “medidas de emergência” e um programa que “garanta a estabilidade e sobrevivência futuras” (Gonçalo Riscado, 08.07.20).

E porque no dia em que existir um tratamento (ou uma vacina) e retornarmos, de facto, a uma coexistência normal (sem ser higienizada), queremos que tudo fique à nossa disposição e daqueles que nos procuram como destino turístico.

O que não pode acontecer é a desvinculação unilateral de uma entidade pública, nomeadamente, a Câmara Municipal de Ponta Delgada que reduziu, de forma inqualificável, os apoios concedidos aos agentes culturais do concelho, retirando o tapete a muitos projetos que subsistem por intermédio da previsibilidade veiculada (e aprovada) pelo Regulamento Municipal de Apoio a Atividades Culturais.

Esta atitude não é compaginável com um período do qual se exige cooperação e responsabilidade dos gestores da coisa pública.

Desvirtuar as pessoas que dependem (quase em exclusivo) deste sector de atividade, é não compreender que existem pessoas e empregos depois do espectáculo acabar.

Será este um passo no processo de candidatura a Capital Europeia da Cultura? 

* Publicado na edição de 24/07/20 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 10 de julho de 2020

Irrefutável

Vivemos um período de enorme expectativa quanto ao evoluir da pandemia, saturados que estamos do confinamento e em que se torna prioritário o retomar, em pleno, da actividade económica.

Em paralelo, somos confrontados com indicadores que nos dão contam que os números não estabilizaram em território nacional e que existem várias cadeias de transmissão activas (do vírus), sobretudo, na região da Grande Lisboa.

O desconfinamento era (e é) uma inevitabilidade, já todos o sabíamos. Mas o mesmo não é dizer que o pior já passou quando são mais as dúvidas do que as certezas. E todos os dias, a nível global, são registados recordes de mortes e novos infectados.

Parte do problema está na percepção (pela população) da mensagem transmitida pelas entidades oficiais, a qual tem sido, repetidamente, desacreditada, na medida em que, por exemplo, no início do período de confinamento não era preciso usar máscara, para mais tarde ser assumido que sim.

A intenção tal como foi comunicada, pareceu errática. Os efeitos não se fizeram esperar e, neste momento, passamos da categoria ‘exemplar’, na contenção e no combate à pandemia, para o nível ‘indesejado’ (e impedidos de viajar para diversos países europeus).

No caso dos Açores, temos sido mais cautelosos neste processo de ‘regresso à normalidade’, o qual tem vindo a efectivar-se a um ritmo próprio e desfasado do calendário nacional.

Não dispondo de toda a informação relativa à complexidade da execução, e aplicabilidade, de um plano sanitário, num território disperso e fragmentado, em que os meios disponíveis são díspares, parece-me que esta tem sido uma atitude previdente e tem surtido bom efeito (mesmo e apesar de todas as questões que possam ter corrido menos bem).

Este tempo tem demonstrado o quão importante significa ter um estado forte e com capacidade de resposta.

As instituições públicas (da Saúde à Cultura) implicam um investimento continuado. Não podemos partir do princípio que está tudo feito e que não é necessário investir novamente, sendo que parte deste (re)investimento não é (exclusivamente) material. A (melhor) capacitação do sector público requer meios humanos motivados e com recursos ao seu dispor.

Nada tenho contra a iniciativa privada e concordo, em absoluto, com os incentivos públicos atribuídos às empresas (do pequeno investidor ao grande grupo económico).

Contudo, este apoio não pode ser realizado às custas de um desinvestimento na administração pública, nem pela depreciação dos seus quadros e das suas condições de trabalho.

O absurdo da situação que todos experienciamos, tem sido a prova irrefutável de que necessitamos de um Sistema Nacional (Regional) de Saúde eficaz e com elevado sentido de compromisso.

A este respeito, li uma entrevista ao médico Roberto Roncon, coordenador do Centro de Referência de ECMO do Centro Hospitalar Universitário de São João, o qual está a trabalhar há três meses consecutivos, sem folgas, e que vai ter, finalmente, quatro dias de férias com a família (mas sem desligar o telefone).

Retive esta passagem. “Dizer que o SNS é muito importante mas fazer declarações que dão a entender que o que nós fizemos não foi mais do que a nossa obrigação não é verdade. O que nós fizemos não é normal, está para lá do que é previsível. O que nós estávamos à espera era de um mínimo reconhecimento” (Expresso, 24 junho 2020).

Ninguém é negligenciável, em particular, todos os profissionais que todos os dias se confrontam com uma doença da qual pouco ou nada se sabe e que, ao contrário do que se possa pensar, não desapareceu.

Pede-se, responsabilidade e bom senso.

* Publicado na edição de 26/06/20 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 19 de junho de 2020

Resiliência (comunitária)

No rescaldo da primeira vaga da pandemia regressamos à rotina (possível) com a (necessária) responsabilidade individual (e colectiva), por forma a superar os enormes desafios com que nos confrontamos.

O mundo continua pandémico mas, ao contrário das primeiras semanas de confinamento, as notícias sobre o desenvolvimento das investigações sobre tratamentos e o progresso no caminho para uma vacina são, actualmente, ruído envolto em polémica e contradição.

Num período em que muitos contestam as rigorosas medidas de confinamento devido à Covid-19, ficamos a saber que um estudo do Imperial College (Inglaterra) afirma que podem ter sido evitadas 3,1 milhões de mortes em 11 países europeus, na medida em que o “fique em casa” teve um “efeito substancial” e ajudou a baixar a taxa de transmissão da infeção (Rt). O estudo não inclui Portugal mas não será por isso que deixa de ser credível.

A crise económica que entretanto se instalou leva (previsivelmente) a que o clima contestatário suba de tom. No entanto, importa ressalvar que perante a inexistência de dados esta é, foi e continua a ser a melhor arma para travar o vírus. E se, entre nós, a mortalidade associada ao Covid-19 tivesse tido números mais expressivos (com todo o respeito por todos aqueles que perderam a sua vida), qual seria o discurso de quem contesta as restrições do confinamento, a morte do Governo? Provavelmente.

A procura por uma causa externa que justifique o que se passou, ou a imputação da culpabilidade para um organismo tangível, é um argumento tão disseminado como a própria pandemia.

Neste capítulo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) passou a ser arma de arremesso para justificar a impotência das nações na luta contra um inimigo invisível para o qual não há cura.

O discurso populista (reacionário e xenófobo) tomou conta da realidade (virtual e concreta). Mas se há algo positivo neste vírus, permitam-me a ironia, é a de ter feito cair a máscara a muita gente.

A desigualdade (social e económica) não é (apenas) aparente, por estes dias a contingência sanitária tornou-a saliente, veio para a rua e está à flor da pele.

Desenganem-se aqueles que consideram que a resolução económica para os problemas gerados pelo confinamento está circunscrita a estes nove calhaus, como por vezes se ouve por aí. O incremento do turismo, como dos restantes sectores económicos, será gradual e dependerá, em larga medida, da confiança dos países emissores/consumidores.

A resposta à crise depende (inexoravelmente) da nossa resiliência e do nosso sentido de comunidade, pois “sem compaixão e fraternidade fortalecem-se apenas os muros e aliena-se a possibilidade de lançar raízes” (José Tolentino de Mendonça, 10 junho 2020).

Paralelamente, temos de garantir os meios financeiros necessários (e fundamentais) para a retoma consolidada da actividade económica, por intermédio, como já foi noticiado, de uma intervenção substancial da União Europeia. A Região tem feito o que lhe compete no complemento (e reforço) às medidas de apoio nacionais mas o tecido económico (e social) exige um reforço dos recursos que temos ao nosso dispor.

A pandemia é global mas as diferenças (culturais e geográficas) não se dissiparam, apenas o problema aparenta ser partilhado.

Nesta semana, voltamos a identificar mais um caso positivo entre nós. Pelas razões que todos conhecemos, selar o espaço aéreo não é uma opção.

Nem me vou dar ao trabalho de esgrimir argumentos sobre o conceito de (des)continuidade territorial, nem sobre a urgência da discussão constitucional (e da extensão dos poderes da Autonomia que nos assiste). Não deprecio a relevância da matéria, apenas considero que há prioridades.

Esta é a prova que evidencia a importância de testar quem aterra. Não vale a pena diabolizar a coisa, e como já todos percebemos, vamos ter de aprender a lidar com isto (dentro da normalidade possível). E sim, estamos (melhor) preparados, não podemos é continuar paralisados. Não é (nem será) bom (para ninguém).

* Publicado na edição de 12/06/20 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 3 de junho de 2020

Ruído (excessivo)

Aprendemos a desconfinar com o manto da segunda vaga (covid-19) como cenário eventual.

O mundo intenta lidar com um problema do qual ninguém tem memória nem sequer é comparável, nem há verossimilhança possível, por exemplo, com outras crises económicas.

O infortúnio (global) que se perspetiva no presente imediato (e no próximo futuro) resulta da urgência sanitária para preservação das respostas dos sistemas de saúde. Neste sentido, fruto deste cuidado e mitigação, é possível implementar medidas de apoio (incentivo comercial e de confiança dos consumidores) para um regresso ao (novo) normal (seja lá o que isso for).

Não partilho da ideia romântica (que se propagou durante os dias de quarentena) de que no final disto tudo (cujo desfecho é incerto) ia #ficartudobem. Não vai.

Nem toda a população passou (e está a passar) por este tempo da mesma forma, na medida em que há quem não tenha perdido rendimentos e está ‘entediado’ com o confinamento (forçado), noutro sentido, temos empresários e empreendedores que fecharam e perderam a sua carteira de negócios (de um dia para o outro) e assistimos a muitos trabalhadores (em suspenso) na incógnita de saber se vão (ou não) regressar ao trabalho.

No meio deste pandemónio há sempre quem encontre mais-valias e perspective oportunidades. A nova fórmula dos gurus da economia (alimentadores de esperança virtuosa perante o desespero alheio).

Parte da nossa economia existe (e subsiste) devido ao nosso (re)encontro comunitário, do turismo à cultura. Sem um regresso a estas práticas que nos definem como indivíduos, e como sociedade, dificilmente haverá normalidade, possível (ou forçada).

E, contrariamente ao que muitos poderão ter considerado, há coisas que nunca irão mudar. Uma parte (significativa) deste processo de desconfinamento não acontece por uma questão de saúde mas pelo regresso (necessário) da economia.

Se há coisa que (a cada dia que passa) nos parece evidente, é a de que temos de aprender a (con)viver com o vírus, com as novas regras de higienização e de distanciamento, sendo “impressionante o número de pessoas que esperam que uma catástrofe seja a oportunidade para resolver problemas” e que de forma visionária (e magnânima) proponha que se altere (radicalmente) “o modelo de sociedade”, substituindo “os valores vigentes” e alterando “os padrões de consumo.” (António Barreto, 19/04/20).

Não acredito em processos de purificação colectiva, nem no oportunismo gerado por esta pandemia para regenerarmos a humanidade. No país mais poderoso do mundo, temos o exemplo maior na (pior) gestão de uma crise (sem precedentes) através da desinformação, do divisionismo e no fomento do ódio.

Este é momento em que (aparentemente) somos todos especialistas (no conforto da timeline), local privilegiado para a disseminação de posições extremadas e de (múltiplos) ódios. Neste tempo extraordinário, a única certeza que temos é a de não ter (ou ninguém deter) certeza(s) sobre (quase) nada.

Perante o ruído (excessivo) dos ecrãs e do lead noticioso, este deveria (também) ser um tempo de reflexão, para “memória futura e “lucidez no presente”.

E para quem governa na incerteza dos dias, entre a coragem e a loucura, é necessário “uma boa dose de humildade” para benefício de “novos processos de aprendizagem que possibilitem outro tipo de abordagem à realidade” (Rui Torrinha, 24/05/20), com vista à sua transformação e calendarização (futura) no retomar da nossa vida colectiva.

* Publicado na edição de 29/05/20 do Açoriano Oriental
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quinta-feira, 14 de maio de 2020

Cultura (em tempo de pandemia)

O confinamento social a que estamos sujeitos tem revelado, simultaneamente, o melhor e o pior que há em nós.

Temos assistido a um conjunto significativo de iniciativas solidárias para acudir aos menos protegidos, cuja precariedade é mais evidente no modelo económico (e social) vigente, o qual fragiliza quem está mais vulnerável.

Por outro lado, proliferam as teorias da conspiração e a partilha de factos falsos e erróneos que disseminam o ódio (e o medo) pelo outro.

A incerteza dos dias alimenta a oportunidade dos populistas que navegam no éter da timeline à procura de um lugar no pódio do soundbite, no qual “as redes sociais, espelho ampliado e distorcido da realidade, estão cheias de sinais de angústia e ressaca” (Cristina Fernandes, Revista Electra nº 8).

Este não é o tempo de procurar inimigos sem rosto, nem reivindicações anacrónicas destituídas de sentido e representatividade. E com isto não estou a dizer que está tudo bem. Vivemos numa democracia, conquistamos o dever de ser críticos e de manifestar a nossa opinião com absoluto sentido de responsabilidade.

Em dias de pandemia passamos (ainda) mais tempo em redor dos ecrãs, inertes à luz que emana dos vários dispositivos ao nosso dispor.

A sedução é evidente. Perante o imobilismo passamos a socializar, quase em permanência, em formato digital.

Mesmo os utilizadores mais relutantes renderam-se às evidências. E não se iludam, há mesmo um admirável mundo novo que veio para ficar.

Os números dos serviços ‘on demand’ têm atingido valores nunca dantes atingidos e que só se explicam pelo aumento exponencial do consumo de conteúdos (comunicações) em casa.

A título de exemplo, o Barómetro de Telecomunicações da Marktest (28/04/20) indica que são, agora, mais de dois milhões os portugueses que subscrevem plataformas de entretenimento em streaming. E que registou, por exemplo, entre Fevereiro e Abril, mais 800 mil subscritores de serviços como a Netflix ou a HBO.

Este ‘novo normal’ tem levado a concessões sem paralelo na indústria cinematográfica, sendo possível assistirmos, na cerimónia dos Óscares do próximo ano, à nomeação de filmes que foram exibidos (apenas) em ‘streaming”.

Resta saber se esta é uma concessão temporária ou se veio para ficar. Só o mercado o dirá.

Apesar do beneplácito pela profusão da disponibilização de conteúdos culturais/informativos online, há que sublinhar que existem pessoas por detrás do ecrã e que o produto do seu trabalho faz-nos “sentir vivos” mas cuja profissão - à semelhança de muitos outros sectores essenciais que têm sido valorizados por estes dias, é “mal renumerada, com pouco reconhecimento social, mas também (…) alvo de aplausos.” (Vitor Belanciano, 03/05/20).

É importante que a emergência deste estado de coisas não conduza à calamidade do sector cultural, um dos primeiros a fechar e, muito provavelmente, um dos últimos a abrir, apesar do Plano de Desconfinamento apresentado esta semana. É uma área resignada a sucessivos “financiamentos insuficientes” (Cíntia Gil, 10/04/20), pelo que importa, por isto, não cair na tentação de aplicar um corte (cego) nos apoios aos artistas e no financiamento das instituições culturais.

O futuro da cultura em tempo de pandemia dependerá, também, da prioridade que lhe for consignada.

* Publicado na edição de 04/05/20 do Açoriano Oriental
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domingo, 3 de maio de 2020

Atenção (e importância)

Calendarizar o futuro próximo (da programação cultural) é uma tarefa inglória (e angustiante), perante a incerteza dos dias e de uma realidade que já não será o que era.

Na semana passada a Presidente da Comissão Europeia - Ursula Von der Leyen, apresentou um "Roteiro europeu conjunto para o levantamento das medidas de contenção da covid-19", que define um conjunto de princípios orientadores para a retoma gradual da atividade económica.

Ficamos a saber que existem previsões para múltiplos cenários mas não iremos passar à “normalidade” de um dia para o outro, a aglomeração de pessoas será realizada de forma faseada, evoluindo progressivamente, existindo a intenção de privilegiar a reabertura de escolas e universidades, lojas, cafés e restaurantes. Para o final, ficará o retomar dos eventos públicos (festivais e concertos, por exemplo).

Ninguém questionará, acredito, este conjunto de recomendações mas não deixa de ser simbólico que a Cultura - ou tudo o que directa e indirectamente está relacionado com actividade artística - surja neste alinhamento (e noutras situações) na última posição.

Foram um dos primeiros serviços a ser encerrados e serão, muito provavelmente, os últimos a reabrir.

Neste período de paralisação (que todos compreendemos e concordamos), como será o acesso do público a salas de espectáculo e recintos fechados? São questões que, para já, carecem de mais dados (e tempo) para que se possa ter ou dar um resposta assertiva.

O sector cultural (e criativo) é frágil e demasiado fragmentado (nas suas variadas formas de actuação) mas é consensual que a Cultura será, neste período, um dos sectores mais afectados pelas medidas de contenção devido, em particular, ao encerramento de teatros, salas de concertos e outros espaços públicos.

A resposta pública tem apontado várias medidas de apoio para mitigar a perda de rendimento dos profissionais mas é necessário ter em linha de conta a especificidade de um sector económico com regras e dinâmicas próprias, nem sempre enquadradas com um contrato de trabalho, onde a maioria dos trabalhadores é independente, com cariz precário e intermitente, e sem o garante da protecção social que se exige num tempo como este.

Os artistas (técnicos e outros trabalhadores do sector cultural) não são indispensáveis para o combate à pandemia mas o resultado do seu trabalho tem sido vital nestes dias de confinamento social.

Neste período transitório é necessário assegurar que são tomadas medidas que abonem a sobrevivência do sector cultural num cenário pós-covid.

Continuam a existir muitas perguntas sem respostas mas a percepção dos profissionais deste meio é de que “a relação do público com os espectáculos vai sofrer uma mudança”. A começar pela bondade das actuações online, pois “ao contrário de toda a economia, os dividendos e lucros das plataformas digitais estão a subir”. (Pedro Wallenstein, presidente da GDA, 10/04/19).

Este parece-me um dado que importa estudar e analisar em profundidade, qual o impacto, por exemplo, na indústria dos espectáculos de toda esta exposição de conteúdos online?

Esta tem sido a solução encontrada por muitos artistas e produtores impedidos de actuar em espaço público. Fazem-no agora (gratuitamente) nas suas plataformas online.

A questão que todos colocam é a de “não é claro o modelo de negócio capaz de monetizar este tipo de eventos. (…) Como emprestar sustentabilidade e rentabilidade a estes concertos à distância?” (Miguel Cadete, 16/04/20).

A resposta europeia ao sector cultural tem sido, ela própria, desigual, com uma grandeza e impacto directamente proporcional à sua latitude.

Neste sentido, seria importante não fragilizar, sobremaneira, e de forma fatal, um sector que procura ser reconhecido pelo Estado como merecedor da atenção (e importância) que (aparentemente) tem sido dada por todos os que estão (agora) em casa.

* Publicado na edição de 20/04/20 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 29 de abril de 2020

A excepção (dos factos)

Assistimos a um acontecimento planetário em tempo real que nos remete para um universo ficcional, distópico e incerto, materializado por algo que nunca desejamos experienciar e que “até agora considerávamos impossível” (Slavoj Zizek, 12/04/20).

A percepção do que nos é dado a ver (ler) é a de que nada será como dantes e (ainda) sabemos muito pouco de como as coisas se irão processar daqui para a frente.

O tempo é de incerteza e de muitas perguntas sem resposta, a que se junta um distanciamento social (quase obrigatório), forçado pela emergência de um “estado de excepção” (Giorgio Agamben, 2003).

A internet nunca foi tão importante, como agora, na manutenção da normalidade (possível). E por possibilitar a proximidade social determinada por um período de distanciamento geográfico que nos impossibilita uma interação convencional mas que tem permitido manter, em padrões minimamente aceitáveis, parte da economia (e da nossa vida profissional) e o acesso a serviços essenciais, sejam nas plataformas públicas, na aquisição de produtos alimentares, no entretenimento ou na informação.

Nesta experiência civilizacional, a dependência de uma boa rede de comunicações passou a ser vital e, sem dramatizar, um factor de sobrevivência.

A falta de uma estratégia comum no combate à pandemia é, muito provavelmente, o maior falhanço (político) europeu (e mundial) após a segunda grande guerra. Perante o estado de emergência em que nos encontramos, seria exigível - a quem governa ou dirige as maiores instituições globais - outro tipo de posição perante a necessidade imperiosa de agir para a salvaguarda do bem comum.

Na eminência de um colapso social e económico, poderá a União Europeia procrastinar indefinidamente tudo o que não é adiável?

A somar a tudo isto existe a preocupação - de alguns sectores da sociedade - com o “maior controlo social” - imposto pelas limitações à liberdade de circulação dos cidadãos e de vigilância digital, na medida em que este pode colocar em causa o bom funcionamento da democracia representativa e das instituições, uma vez que “indivíduos condicionados pelo pânico da mera sobrevivência são alvos ideais do poder” (Slavoj Zizek, 12/04/20). Não é o nosso caso (mas exemplos não faltam).

Num contexto tão exigente, como este, é fundamental o acesso à informação segura e fidedigna. Quem a garante? A crise na imprensa não tem estado imune ao processo de transformação digital mas vive num aparente paradoxo, na medida em que as suas notícias nunca foram tão lidas como agora, “sem que esse serviço público seja capaz de gerar receitas suficientes para garantir a sua sustentabilidade financeira” (Manuel Carvalho, 07/04/19).

A discussão sobre o financiamento da imprensa não é de hoje e tem múltiplas leituras, quer seja na concordância com o apoio público, quer por quem o conteste na defesa da liberdade editorial sem eventuais amarras à subvenção pública, sendo certo que a sociedade de leitores deverá pagar pelos conteúdos que quer ler. Algo que, como sabemos, nem sempre acontece.

Para um maior escrutínio da gestão da coisa pública é forçoso que haja uma sociedade mais esclarecida e isso só se consegue com “uma cultura das notícias”, sujeita “ao trabalho de edição e contexto de alguém que é suposto ter uma carteira profissional para exercer jornalismo”.

No entanto, alguns jornalistas facilitam o “estatuto noticioso” às “redes sociais”, sem a mediação e edição jornalística, provocando, intencionalmente ou não, uma (in)evitável “erosão da profissão feita pelos próprios profissionais” (José Pacheco Pereira, 02/01/16).

Nestes 185 anos do Açoriano Oriental, apesar de todos os desafios e dificuldades com que nos confrontamos, reitero a confiança nos seus profissionais para que continuem a alimentar a imprensa regional nos Açores com a “informação baseada em factos e não na manipulação sensacionalista dos factos” (Amílcar Correia, 11/4/20).

* Publicado na edição especial de aniversário do Açoriano Oriental (18/04/20)
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quinta-feira, 9 de abril de 2020

#quarentena

Por estes dias passamos a ser, quase sem excepção, especialistas em covid-19, peritos (de sofá) em saúde pública com opinião (formatada ao minuto pela avalanche noticiosa) e com sugestões para distribuir.

Aos primeiros dias desta #quarentena assumi que iria reduzir (significativamente) a minha exposição ao ruído das notícias em repetição - ad nauseam, por forma a salvaguardar a higiene mental da minha família. Assumi um detox noticioso e, neste momento, cumpro apenas os serviços mínimos da actualização diária dos números trágicos de uma pandemia (sem rosto), sendo certo que existem pessoas por detrás da estatística, algo que, tendencialmente, desvalorizamos.

Procuramos uma explicação plausível para o que nos atingiu mas não partilho da metáfora de que estamos em guerra, ou de que este é um castigo divino, como há quem goste de profetizar.

No entanto, considero que este é um tempo para reflectirmos sobre o nosso estilo de vida e analisarmos como chegamos até aqui, num momento em que assistimos às consequências do desinvestimento em áreas fundamentais da nossa vida pública em detrimento da especulação financeira.

Muitas das vozes que hoje se fazem ouvir (na defesa do Sistema Nacional de Saúde) eram as mesmas, que há uns anos a esta parte, exigiam a privatização deste e de muitos outros sectores (essenciais) da nossa existência colectiva. Ironicamente, são agora os primeiros a exigir o apoio do Estado, uma postura que não deixa de ser, simultaneamente, paradoxal e hipócrita.

Nestes dias (letárgicos) têm sido comuns os elogios aos que estão na primeira linha do combate da epidemia - profissionais de saúde, bombeiros, polícia ou funcionários dos supermercados, os quais, na maioria das vezes, depreciamos, criticamos ou até ignoramos na azáfama quotidiana, e cujas condições de trabalho (e de segurança) estão longe, como já vimos, de serem as ideais.

Será que é necessário uma pandemia para sermos generosos com aqueles que nos socorrem numa situação de emergência?

Desejaremos regressar ao que tínhamos anteriormente ou será este o tempo de repensarmos e de actuarmos de forma diferente?

A normalidade que se seguirá a estes dias será, muito provavelmente, diferente daquela que a sucedeu mas, também aqui, o regresso ao passado dependerá do tempo em que permaneceremos nesta pausa forçada.

Num olhar mais transversal (e global), não é que nos sirva de grande conforto mas não estamos sós (nesta crise económica e social), e o vírus não escolhe fronteiras nem «olha para condições económicas quando se trata de escolher hospedeiros”, no entanto “não nos iludamos sobre a “democraticidade” da epidemia ou das medidas adotadas para a sua contenção: as suas consequências são brutalmente desiguais.» (Pedro Magalhães citado por Rolando Lalanda Gonçalves, Açoriano Oriental 05/04/20). Este é, infelizmente, um dado incontornável.

Temos de nos preparar, desde já, para o dia seguinte e agir (responsavelmente) perante os desafios que se nos colocam.

Este é um trabalho que não é apenas de alguns mas é de todos, como comunidade, num período (de excepcionalidade) que nos convoca a ser melhores.

Façamos a nossa parte (por mais que isto nos custe), confiando que a contingência nos ajude a chegar mais depressa (e com saúde) ao fim desta situação.

* Publicado na edição de 06/04/20 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 25 de março de 2020

Anormalidade temporária

Este é um daqueles momentos em que a realidade parece ter suplantado a ficção.

Se já (antes) tínhamos esta percepção, num tempo de múltiplas incertezas, das alterações climáticas à política, este novo quotidiano que (todos) experienciamos valida este dado incontornável que mais parece um argumento saído de um filme-catástrofe.

É difícil contornar o vírus que nos contamina, amedronta e paralisa como sociedade (globalizada).

A rotina destes dias remete-nos para uma realidade distópica, na qual uma larga percentagem da população (mundial) acatou, sem precedentes na história recente, uma ordem de confinamento e de isolamento social para suster a pandemia.

Este é, também, um tempo propício a uma “epidemia de informação”, na medida em que “as pessoas prestam mais atenção às informações negativas” e “sentem-se mais motivadas a transmiti-las aos outros” sobretudo, agora, que estão ligadas o tempo todo (Samuel Paul Veissiere, 14/03/20).

Este comportamento é inteiramente justificável perante o receio de algo que nos é desconhecido (e estranho), e porque necessitamos encontrar uma razão para justificar o que nos está a acontecer. Proliferam as teorias da conspiração, o estigma e a exacerbação de estereótipos: há quem acredite no anátema do estrangeiro ou do vírus que veio do longe; ou da punição da mãe natureza à acção do homem sobre o planeta.

O “pânico moral” difunde-se a uma velocidade estonteante perante a avalanche informativa, promove o medo e o receio perante as dúvidas de uma cura que não se compagina com o horizonte temporal da racionalidade económica (e da necessária normalização dos tempos modernos).

As ilhas (já) não estão isoladas, a distância geográfica aqui não funciona como defesa natural, apesar de, por estes dias, procurarmos um corte umbilical com a conectividade que sempre lutamos por ter, por forma a tentarmos (sós) conter os malefícios desta (nova) peste que nos remete para uma “memória arcaica” e de “temores que pensávamos esquecidos e enterrados” (Paulo Pires do Vale, 20/03/20).

Paralelamente, há quem acredite que, depois de tudo isto, a humanidade sairá reforçada e que iremos todos (empresas, estado, indivíduos e sociedade) agir melhor e, de forma, mais solidária. Será que perante esta (nova) crise económica abrupta (e total), haverá espaço para repensarmos todo o percurso até aqui ou, no dia seguinte, haverá necessidade de acelerar todo o processo económico na reposição do tempo perdido e dos rendimentos das famílias?

O mundo como o conhecemos será, inevitavelmente, diferente. Resta saber quanto e em que medida?

Iremos alterar a nossa forma de mobilidade? Se assim for o turismo, como hoje o conhecemos, irá sofrer um duro reajustamento.

Para o filósofo Yuval Noah Harari (21/03/20), a solução de futuro não passa por desmantelar o nosso sistema global de comércio e transportes, pois isto “não nos protegerá verdadeiramente de epidemias futuras” mas, sim, por mais “investigação científica”, pela “troca de informações mais aberta” e pela “criação de um sistema de saúde verdadeiramente global”.

Desejo que esta seja, efectivamente, uma “anormalidade temporária” e que este seja o tempo de (primeiro) cuidar dos vivos, para que a economia recupere depois (Rui Tavares, 18/03/20).


* Publicado na edição de 23/03/20 do Açoriano Oriental
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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Teatro (profissional)

A ideia não é nova, a discussão é antiga e, ocasionalmente, surge quem a recupere e a intente.

Desconheço o que está na génese desta iniciativa, se é apenas um mero expediente na agenda política ou se resulta da auscultação do sector artístico.

Fazendo fé na reacção dos artistas à intenção de gerar uma nova entidade pública empresarial (paradoxalmente quando estamos num processo de reformulação da participação da região no número de empresas e associações em que participa) para gerir os destinos de uma companhia de teatro profissional, com sede na ilha Terceira, o projecto está longe de ser consensual ou ter a sua validação.

E não será difícil perceber porquê.

No passado recente, temos assistido a um maior dinamismo dos agentes culturais da região, fruto de uma geração que saiu para estudar e que pretende regressar (se não a totalidade pelo menos uma parte), pela actividade desenvolvida por um conjunto de entidades públicas e privadas no sector cultural (que têm posicionado o arquipélago no mapa artístico).

Formalizar a intenção de sediar a constituição deste grupo profissional, na ilha Terceira, por via da “grande tradição que a ilha tem no desempenho de artes cénicas (…)” e “pelo próprio caráter espontâneo associado às danças e bailinhos de Carnaval” é um péssimo princípio, na essência é redutor e é revelador da forma como continuamos a olhar para a nossa descontinuidade territorial, na medida em que a localização é o dado menos importante desta equação.

Como já (aqui) defendi por inúmeras ocasiões, o futuro das artes nos Açores é o da profissionalização, não há volta a dar, mas não por este caminho.

Para que isso possa (um dia) vir a acontecer, temos todos de trabalhar em estreita cumplicidade (entidades oficiais: locais, municipais e regionais; artistas e instituições), no sentido de gerar sinergias que permitam um apoio consistente, e duradouro, a esta actividade, permitindo sedimentar o trabalho realizado (como continuado e não esporádico), quer na redefinição de políticas para o sector, quer na formação de públicos e na construção de melhores cidadãos (e de uma melhor cidadania).

A componente pedagógica não carece de uma companhia profissional para ser desenvolvida, ela pode e já é desenvolvida por todos aqueles que actuam nos palcos da região. Se pode ser incrementada e melhor promovida? Parece-me evidente. Pode, inclusive, ser uma âncora da sustentabilidade da própria actividade artística, na colaboração com outros sectores da sociedade, da educação à inclusão social, passando pela sensibilização ambiental à animação turística.

Pela forma como está idealizada, a fundação desta companhia profissional não implica, pelo contrário, desresponsabiliza o papel dos municípios na gestão de conteúdos e das equipas que habitam os auditórios e salas desta região.

Para que se possa conceber um circuito de circulação (e de itinerância à escala regional), temos de garantir que existem condições materiais para poder acolher objectos artísticos contemporâneos, não menorizando as exigências elencadas por companhias e artistas. Como muitas vezes acontece.

Respeitar o trabalho alheio, neste caso artístico, não é favor, é uma condição fundamental para o profissionalmente que nos assiste.

Mais do que fundar uma companhia profissional de Teatro (e já agora porque não de Dança ou mesmo uma Orquestra), o que é necessário é apoiar, de forma substantiva, a actividade de quem já a exerce, inserir critérios de diferenciação (entre os diferentes agentes), realizar encomendas, acompanhar de forma presente a acção desenvolvida no território e fomentar a circulação dentro e fora da região.

* Publicado na edição de 25/02/20 do Açoriano Oriental
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Democracia cultural

O Plano Nacional das Artes (PNA) foi apresentado, formalmente, em Junho do ano passado com a chancela dos Ministérios da Cultura e da Educação (mas a sua práxis pretende distender-se a toda a esfera pública).

Para melhor se dar a conhecer, o PNA tem utilizado a frase de Sophia de Melo Breyner Andresen, na intervenção que fez na Assembleia Constituinte de 2 de Setembro de 1975: «a cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar».

O comissário do Plano Nacional das Artes, Paulo Pires do Vale, curador e professor universitário, esteve, na passada semana, no Museu Carlos Machado para protocolar com a Direção Regional da Cultura a extensão, aos Açores, desta iniciativa que será materializada através do projecto “De Fenais a Fenais: Cultura Matriz do Desenvolvimento Local”.

“De Fenais a Fenais” tem a coordenação do Museu Carlos Machado (cuja acção no território não está confinada aos ‘muros da cidade’ que o acolhe, como fez questão de referir o seu director) e será implementado e desenvolvido, até 2022, num espaço geográfico identificado como de "intervenção prioritária no combate à pobreza e exclusão social, abrangendo as freguesias de Fenais da Luz, Rabo de Peixe, Maia e Fenais da Ajuda".

A escolha do Museu Carlos Machado não é inocente, e parte da sua actividade recente (Museu Móvel, projecto “Para Além da Paisagem - Sete Cidades, para dar alguns exemplos), influenciou, nas palavras do comissário nacional, o carácter de que se reveste o PNA, o qual visa aproximar a cultura e as artes dos cidadãos.

Este não é um Plano que exista por si só, pretende contaminar toda a comunidade, da escolar à empresarial, e terá, igualmente, a responsabilidade de coordenar outros planos sectoriais já existentes, como o Plano Nacional de Leitura, o Plano Nacional de Cinema, a Rede Portuguesa de Museus ou o Programa de Educação Estética e Artística.

A visão que preside a este conjunto de boas intenções é vista sem paternalismos, na medida em que não se pretende decidir sobre o que os cidadãos devem consumir do ponto de vista cultural, pois mais do que ser um facilitador na “democratização da cultura" prende-se incutir um conceito de "democracia cultural", utilizando as palavras de Paulo Pires do Vale, o qual acredita que "todos têm algo a dar para a cultura de todos".

Este é um programa que pretende levar (dar) conhecimento ao (do) território, passando pelo património material e imaterial, e realizando o (necessário) cruzamento com um olhar contemporâneo. A desmistificação da ideia que temos dos artistas, e a sua presença no espaço escola, procura, igualmente, contribuir para operar mudanças na forma como lidamos com a fruição mas, também, com a produção cultural. Contribuindo activamente para “alavancar o pensamento crítico, a nossa capacidade de resolução de problemas e a nossa capacidade de criatividade individual e colectiva” (Tiago Brandão Rodrigues, Público, junho 2019).

Este é um período que implica (forçosamente) uma leitura esclarecida - sobre a volatilidade do que se passa à nossa volta - e torna pertinente o “repensar a nossa noção de literacia. O que é hoje ser-se culto ou alfabetizado?” (George Steiner, Expresso, junho 2017).

E em boa hora se corporizou este Plano Nacional das Artes, num tempo em que os países têm de cortar em coisas “supérfluas”, alienando as humanidades em detrimento de “competências úteis e profundamente técnicas e adequadas à geração de lucro” (Martha C. Nussbaum, 2019).

* Publicado na edição de 10/02/20 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Reflexão (colectiva)

A reportagem do serviço público de rádio e televisão mostra a escassez de bens alimentares nas ilhas das Flores e Corvo, as imagens de prateleiras vazias não deixam ninguém indiferente, em particular, num período (simbólico) como o Natal.

Para além da destruição (quase total) do porto das Lajes das Flores, este é o efeito mais evidente da incapacidade gerada pela inoperacionalidade desta infraestrutura que, apesar do enorme esforço de adequação por parte da entidade que gere os portos da região, tem levado à intermitência do abastecimento regular (por via marítima) do grupo ocidental.

Todos os anos o rigor do inverno torna (mais) difícil as ligações (aéreas e marítimas) com as ilhas mais ocidentais da europa, esta não é uma situação nova para estas populações habituadas que estão à borrasca das intempéries e a dias (consecutivos) de (maior) isolamento.

As comunicações são hoje, felizmente, possíveis através da fibra óptica que torna menos penosa a lonjura que as separa do multibanco mais próximo (que indica como alternativa a deslocação ao Faial, Terceira ou mesmo Santa Maria - não é piada, já o testemunhei).

No entanto, temos de ter consciência que nada será como dantes, e os efeitos da passagem do furacão Lorenzo, pelos Açores, não podem ser considerados como um caso isolado e devem constituir um sinal de alerta para o futuro.

A este respeito devemos encarar com enorme seriedade os efeitos resultantes das alterações climáticas e o seu impacto nas ilhas. Temos aqui um exemplo concreto do que poderá ser o nosso futuro (mais próximo) no que concerne à ocorrência de fenómenos climáticos extremos.

Os furacões poderão assolar o arquipélago de forma mais regular e, para tal, devemos, desde já (se é que já não os temos), pôr em prática planos de contingência (alimentar, por exemplo) para mitigar situações como a que as Flores e o Corvo têm experienciado.

Apesar de todos os esforços envidados, pelas entidades oficiais, locais, municipais, regionais e nacionais, para o restabelecimento da normalidade (possível) àquelas ilhas, desengane-se quem assumir compromissos com prazos irrealistas e soluções impossíveis.

Importa frisar que os danos infligidos por este fenómeno (extremo) ascendem aos trezentos milhões de euros, em todo o arquipélago, os quais levarão anos a ser recuperados. Este não é um assunto que se resolva de um dia para o outro.

O político que intenta retirar dividendos (com recurso a uma calamidade pública) não pode ser uma pessoa idónea. A ética democrática deve ser um valor estimado perante a sistemática desvalorização do compromisso e da palavra, numa realidade paralela e num espaço (online) repleto de ódio, vitimização, notícias falsas, factos alternativos e teorias da conspiração.

Outro dado a destacar desta ocorrência (extraordinária) tem de ver com a importação de produtos agrícolas. Considero que a defesa da nossa sustentabilidade ambiental, também, passará por aqui. Mas será que já medimos a pegada ecológica das batatas e cebolas que nos chegam do exterior? Não será esta uma oportunidade para alterarmos comportamentos e questionar se faz sentido importar vegetais e legumes frescos? E, complementarmente, reduzirmos a nossa dependência alimentar, tornando a nossa existência, efectivamente, mais saudável, sustentável e evitando a rotura de produtos alimentares?

A este propósito cito John Fowler no seu ‘”Diário de um Náufrago nas Flores e no Faial” (IAC, 2017), no qual retrata a vivência na ilha das Flores na primeira metade do século XIX: “têm um solo de invulgar riqueza e fertilidade, produzindo milho indiano, trigo, inhame e batatas e uma oferta abundante de forragem, entre as quais devo incluir o tremoço, criado e cortado para alimentar gado (…) a par com algumas plantações de laranja, maçã, pêras e figos (…)”.

Fica o testemunho histórico para reflexão (colectiva).

* Publicado na edição de 13/01/20 do Açoriano Oriental
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domingo, 12 de janeiro de 2020

Urgência (climática)

Caminhamos para o final do ano e de um tempo (que é novo) mas que ninguém sabe, verdadeiramente, qual será.

Os sinais (do planeta) nunca foram tão evidentes, como agora, quanto num passado recente pareceriam saídos de um filme de ficção.

Como já o testemunhamos, vezes sem conta, a realidade tem suplantado a ficção. O que antes parecia ser uma leitura apocalíptica passou, agora, a ser plausível.

Nos Açores, os efeitos meteorológicos sempre foram vividos de forma intensa. Pelo que encarar os efeitos da passagem do Furacão Lorenzo, em particular, no grupo ocidental do arquipélago, apenas como um problema logístico e de abastecimento é estar a ignorar, ostensivamente, a raiz de uma questão mais abrangente e de contornos imprevisíveis.

O Programa Regional para as Alterações Climáticas (PRAC) foi publicado, recentemente, em Diário da República.

A importância da sua entrada em vigor é algo que não deve ser depreciado por ninguém, muito menos, por quem tem responsabilidades na vida pública e económica das ilhas, afirmando que esta problemática é uma questão de “fanatismo” e um “desatino”.

O combate às causas e aos efeitos das alterações climáticas é uma questão que não exclui ninguém, porquanto as suas consequências não têm um carácter selectivo.

Este plano regula a Estratégia Regional para as Alterações Climáticas, sobretudo, na mitigação e redução das emissões dos gases com efeito de estufa, consubstanciado na intenção de investir “na descarbonização e no aumento da eficiência da economia, tornando-a menos dependente dos recursos energéticos externos” e em “medidas que protejam os bens, os recursos e as pessoas” da acção das alterações climáticas (GACS, 29/11/19).

Na semana que terminou, ao mesmo tempo que os ingleses votavam, esmagadoramente, a favor do Brexit, foi apresentado pela presidente da Comissão Europeia, Ursula van der Leyen, “O Pacto Ecológico Europeu” assente em dez pilares que propõem 50 iniciativas para converter o combate às alterações climáticas no novo modelo de crescimento económico (do velho continente).

Os Açores não podem ficar fora desta discussão e, apesar de existirem sinais positivos para a construção de um futuro (verdadeiramente) sustentável, não podem existir dúvidas, nem posições titubeantes no caminho que temos de seguir.

O populismo ganha terreno (e por cá adeptos não faltam) numa sociedade “enraivecida e polarizada”, exercido por inúmeros “especialistas” com direito a opinião e com recurso a um processo de “vitimização” permanente, o qual leva “as pessoas a pensar que a vida deveria ser uma utopia perfeita concebida à medida das suas sensibilidade frágeis e específicas, encorajando-as a manterem-se crianças para sempre, vivendo num conto de fadas cheio de boas intensões.” (Bret Easton Ellis, 2019).

A leitura destes dias podia ser resumida por esta passagem: “Obcecados com números, indicadores, pontuações, rankings, ratings ou likes, já nem nos damos ao trabalho de pensar. O nosso espaço mental é uma tabuada. Consumimos percentagens como se fossem ansiolíticos. Vivemos em cálculo permanente. Desiste-se de elucidar, de reflectir ou persuadir.” Vitor Belanciano, 15/12/19).

Os Açores não são o paraíso que, por vezes, se lê por aí. Mas também não são a desgraça (colectiva) que se pretende veicular por alguns círculos.

Negar as evidências de uma urgência climática (e a tentativa de “silenciar o indivíduo” que a expõe) será, muito provavelmente, o maior crime deste “novo mundo”.

* Publicado na edição de 16/12/19 do Açoriano Oriental
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