segunda-feira, 23 de novembro de 2020

A Cultura é segura

O aumento de casos de covid-19 na região fez regressar o receio de um novo confinamento, o que não é desejável, e ninguém, digo, quer que aconteça.

Não obstante, com a proliferação das cadeias de transmissão, inevitavelmente, com maior incidência em São Miguel, foi implementado um conjunto de recomendações que restringem a actividade de múltiplos sectores, todos eles em luta permanente contra as enormes adversidades e contingências a que as medidas sanitárias obrigam.

Nos Açores, para salvaguarda da saúde pública, foi decidido que as actividades culturais, promovidas e acolhidas por instituições públicas, deviam ser suspensas até 30 novembro.

Em território continental, apesar da situação epidemiológica estar distante daquela em que nos encontramos – quer nos números, quer na pressão exercida sobre o sistema de saúde –, a programação cultural tem sido mantida e adaptada às limitações inerentes, por exemplo, ao estado de emergência declarado, nomeadamente, com as alterações nos horários de início dos espectáculos, para respeitar o recolher obrigatório, que vigora em numerosos concelhos do país.

A defesa da saúde (pública) tem sido uma prioridade do governo que agora cessa funções e será, com certeza, do que lhe irá suceder.

Respeito as decisões que têm sido tomadas, mas questiono a pertinência de encerrar um sector que tem sido fortemente fustigado e limitado em todo este processo, quase sem alternativas de manutenção da sua actividade, o qual cumpre com todas as normas sanitárias impostas, desde o distanciamento físico, à higienização dos espaços e ao uso obrigatório de máscara, durante todo o tempo em que decorre um espectáculo. Qual a diferença que assiste à abertura de uma sala de espectáculos, de um museu ou de um restaurante? A segurança com ou sem máscara?

Com isto não procuro colocar em confronto sectores da economia – todos procuram manter a sua actividade da melhor forma possível, com o intuito de chegarem com vida à outra margem, num período pós-covid.

Mas, a cultura não pode ser encarada como dispensável, nem o encerramento de uma instituição cultural deve ser entendido como normal.

A criação artística é, e tem sido, essencial neste ano atípico, que marcará, indelevelmente, a(s) nossa(s) vida(s), fazendo com que a negritude dos dias possa ter um horizonte de esperança.

Importa, por isso, mais do que nunca, continuar a promover o acesso às artes, ao património e à cultura, seguindo, e fazendo cumprir, todas as orientações emanadas pelas autoridades de saúde.

Este é o tempo de apoiar (permitindo o trabalho) quem vive e trabalha na cultura, nas artes e no património, encarando este universo como uma necessidade vital, como parte integrante e contributiva para o tecido económico e social, e não como uma matéria indiferenciada de que podemos prescindir.

Na luta contra a indiferença e a menorização com que, por regra, a cultura é encarada, importa frisar o seu papel como elemento nuclear na educação da sociedade como um todo e no fomento de um exercício complementar para alcançarmos, desejavelmente, uma cidadania mais esclarecida, mais responsável e que melhor interprete as dinâmicas sociais da comunidade onde se insere.

Por estas razões, e por todo um conjunto multifacetado e alargado de áreas artísticas e profissionais, é importante afirmar que a Cultura é segura.

+ Publicado na edição de 13/11/20 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A festa da democracia?

No rescaldo das eleições regionais, uma parte da solução governativa para os Açores é, agora, decidida, aparentemente, em Lisboa, como terreno (fértil) para a experimentação de (futuros) planos governativos (alternativos) no todo nacional. 

 O resultado eleitoral deu, inequivocamente, a vitória ao Partido Socialista (muito embora sem a maioria de votos obtida anteriormente). 

Este dado não terá constituído (propriamente) uma surpresa para Vasco Cordeiro, político acima de qualquer suspeita, em particular, pela preocupação manifestada, antes e durante a campanha eleitoral, no apelo à participação cívica e na procura de estabilidade governativa perante os tempos desafiantes que atravessamos e os (enormes) desafios de futuro (gerados pela pandemia). 

Maiorias absolutas são, nos dias que correm, uma (a)normalidade democrática, em particular, num tempo disruptivo como o que hoje experienciamos, onde a fragmentação social e económica passou a apresentar (paradoxalmente) uma clivagem mais acentuada. 

Por (de)formação académica privilegio a leitura qualitativa dos números, em detrimento da esterilidade quantitativa, a qual tem ocupado, sofregamente, alguma análise política na procura de interpretar o livre arbítrio dos eleitores. 

O xadrez parlamentar na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores nunca foi tão colorido e isto, sim, deve ser celebrado, contrariando a ideia de que a democracia tem estado suspensa ou a de que foram estas as eleições que vieram “libertar” os Açores (seja lá o que isso significa). 

Por estes dias, importa recordar que foi por iniciativa do Partido Socialista que foi introduzido na lei eleitoral para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, o Círculo Regional de Compensação, o qual tem permitido uma maior equidade na distribuição de votos (no todo regional), aumentando, por este mecanismo, as possibilidades de pluralidade na representação parlamentar, como agora, uma vez mais, se comprova. 

 Assim como, foi, igualmente, por iniciativa do Partido Socialista, introduzida a limitação dos mandatos de Presidente do Governo Regional (para um máximo de três), um presidente independente para o Conselho Económico e Social e, mais recentemente, o Voto antecipado por Mobilidade. 

A nova composição do parlamento regional dará lugar a um conjunto de novas vozes do espectro político, reflexo imparável da rapidez (crescente) das transformações sociais que afectam todas as esferas da nossa vida colectiva. 

O Partido Socialista tem o dever de liderar a formação de um novo governo, interpretando, responsavelmente, os resultados eleitorais, agregando, de forma estável e consistente, um conjunto abrangente de vontades políticas. 

Contudo, existem valores com os quais não podemos estar de acordo, nem podem ser ultrapassados, sobretudo, aqueles que ignoram a autonomia regional, depreciam as instituições regionais, alimentam o populismo, promovem a calúnia e o reacionarismo da extrema-direita. 

Um acordo ou parceria com uma força política com este tipo de fundamentos significa, efectivamente, alienar um património construído, por muitas gerações de açorianos, ao longo dos últimos 45 anos. 

A festa da democracia? Sim. Mas esta festa (com estes convidados) não é minha.*

* Frase livremente adaptada de um texto de Milan Kundera (“Um Encontro”, editora D. Quixote, 2011).

+ Publicado na edição de 30/10/20 do Açoriano Oriental
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