Tema(s) incómodo(s) que a ilha (nós todos, entenda-se) não assume e para os quais reserva uma enorme parcimónia, conservando alguma da indiferença que caracteriza as sociedades pós-modernas (ou aquilo a que convencionou designar da hiper-realidade).
Vem isto a propósito da exibição do documentário “I Don’t Belong Here” de Paulo Abreu, construído a partir de uma peça de teatro com o mesmo nome, da autoria de Dinarte Branco e Nuno Costa Santos, concebida a partir das experiências pessoais dos próprios intérpretes que, oriundos dos EUA e do Canadá, são deportados para os Açores.
Esta peça conseguiu um feito inédito, colocou não actores em palco, partilhando as suas histórias de vida, com uma determinação e uma força que os próprios desconheciam (e que produtores e público testemunharam).
E não estamos a falar de exemplos de sucesso, falamos de percursos familiares disfuncionais, desestruturados, violentos e plenos de dependências.
A coragem destes indivíduos (deportados), no assumir um lado menos esplendoroso da sua existência, foi captado pelo realizador durante um período de cerca de dois anos, gerando cerca de 240 horas de material filmado que, após editado, deu origem a um filme com 75 minutos, estreado na edição de 2017 do Festival Doclisboa, no qual obteve o Prémio Escolas/Prémio ETIC para Melhor Filme da Competição Portuguesa.
Este projecto surgiu de um desafio lançado a Dinarte Branco pelo Observatório dos Luso-Descendentes e contou com o apoio de inúmeras entidades, e de muitas pessoas, sem as quais esta empreitada não teria chegado ao fim.
O processo de produção da peça foi muito difícil, não só em termos humanos e de logística, mas também, em termos de montagem financeira, a qual obteve o apoio decisivo da co-produção da Rede 5 sentidos, uma estrutura informal de programação cultural composta por 11 estruturas culturais, da qual o Teatro Micaelense, faz parte, e que possibilitou a itinerância deste objecto artístico. O qual é, ainda hoje, assumido como referência de boas práticas na produção artística em rede.
Destaco, igualmente, os contributos da Fundação AMI, do Governo dos Açores (Direção Regional das Comunidades e da Cultura), da SATA, do Grupo Bensaude, da Açoreana Seguros e da Associação Novo Dia, sem os quais não teria sido possível financiar esta ideia.
Apesar disto, parte substancial do trabalho associado à conclusão do filme, e de parte significativa do processo preparatório, e do decorrer da peça, é fruto do investimento pessoal de todos os envolvidos, os quais dedicaram a este projecto muito mais do que o mero retorno financeiro, muito espartano, diga-se em abono da verdade.
O subfinanciamento da actividade cultural é um constrangimento anterior à crise, estes tempos de contenção apenas vieram fragilizar, sobremaneira, um sector que resiste, irracionalmente, ao determinismo economicista que dita os dias do presente.
Este projecto é a prova de que é possível acreditar numa sociedade melhor, que podemos todos ultrapassar as dificuldades que nos são impostas e temos, como muito e bem disse Álvaro Borralho, no final da exibição do documentário, de conseguir quebrar com os estigmas paralisantes (e permanentes) associados à realidade do indivíduo deportado.
Esta não é uma tarefa fácil, como se depreenderá, é algo que exige muito do próprio, de alguém que vive num estado de permanente injustiça, pelo facto de ter cumprido com a sua pena e que aqui, no espaço que o acolhe, experiencia uma dupla penalidade, na medida em que se vê coarctado da sua família e do meio que o viu crescer.
A desumanidade associada às leis da emigração faz com que o desânimo, e a descrença, façam parte do dia-a-dia destas pessoas.
Pequenos gestos como este, primeiro a peça de teatro e o filme que se seguiu, são contributos para que a cultura, também ela, funcione, de forma activa, para a transformação social.
Se não acreditasse nisto, não faria o que faço.
* Publicado na edição de 12/03/18 do Açoriano Oriental
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