terça-feira, 10 de dezembro de 2024

O papel da Cultura










Nos Açores, assistimos, nas últimas duas décadas, à criação de uma moderna rede de equipamentos e de infraestruturas culturais, a par de um conjunto significativo de transmutações no sector cultural e criativo.

O surgimento de novas entidades pautou-se por uma vitalidade crescente, com múltiplas atividades a decorrer nas várias ilhas, resultando na renovação do sector associativo, no eclodir de novas formas artísticas e no desejo de jovens com formação específica (e superior) em querer fixar-se na região e desenvolver o seu trabalho a partir deste território.

A abertura dos apoios nacionais aos agentes culturais açorianos (em 2018) fez com que o caminho profissionalizante se operasse com outro fulgor, repondo equidade e justiça no acesso a condições e oportunidades idênticas aos restantes profissionais em território nacional.

Este caminho de modernidade (de crescente profissionalização) não retira responsabilidade às instituições públicas regionais. Bem pelo contrário. Implica-as, sobremaneira, agindo em complementaridade com o financiamento externo, sem excluir ninguém, por forma a dar a melhor resposta às exigências e ambições dos artistas, das entidades e de um público mais exigente.

É necessário perspectivar o futuro sem negligenciar o passado, no equilíbrio entre a riqueza identitária que nos une (e diferencia) e a contemporaneidade que habita o presente, conscientes das assimetrias e das idiossincrasias de um território geograficamente disperso, o que, ao invés de se constituir como uma fatalidade, deverá ser encarado como um desafio permanente a que temos de saber dar resposta.

Para atribuir significado ao que aqui defendemos, são necessárias e fundamentais políticas culturais adaptadas a este tempo, às instituições e à pluralidade de agentes e actores que interagem neste palco multifacetado.

É por esta ideia de futuro que devemos pugnar, pelo investimento e pela capacitação continuada dos indivíduos, como cidadãos/criadores informados e interventivos nas suas comunidades, atentos ao seu território, mas abertos ao mundo, ao invés de um olhar que interpreta o indivíduo como uma audiência ou uma massa amorfa (de consumidores culturais).

A Cultura permite diferenciar o território e tem um papel decisivo na qualificação da oferta turística. A vida cultural das diversas ilhas da região, incluindo o património, é um dos principais impulsos que levam as pessoas – tanto residentes, como turistas – a querer conhecer o(s) lugar(es).

No tempo (histórico) em que nos encontramos, é necessário e fundamental que a Cultura assuma um papel primordial na estratégia de desenvolvimento social e económico da região.

Esta é uma síntese do texto que fundamenta a monção sectorial que submeti ao 19º Congresso Regional do Partido Socialista e que foi aprovada, por unanimidade, no final de Novembro, na reunião do Conselho Regional, a qual assume um carácter ainda mais prioritário, quando ficamos a saber que as famílias açorianas são as que menos gastam (despesa total anual média por agregado), em lazer, recreação desporto e cultura, em comparação com o restante território nacional (€534 Açores, contra €652 na Madeira e €861 no Norte, e abaixo da média nacional: €795. Dados do INE, retirados das Estatísticas da Cultura - 2023).

Tal como já pugnei, em múltiplos contextos, urge dotar o sector cultural de maior autonomia na esfera governamental, alterar a arquitetura do seu funcionamento (organização e estratégia), capacitando-a com um orçamento que o dignifique e que seja capaz de responder a quem, neste sector, trabalha. E que, desta forma, possa contribuir (activamente) no combate às crescentes desigualdades (regionais e sociais).


[+] publicado na edição de 10 dezembro 2024 do Açoriano Oriental

[++] fotografia Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas

domingo, 1 de dezembro de 2024

Transporte colectivo (sem) passageiros








O período pós-pandémico, convencionou chamar-se “novo normal”, a retoma de uma nova rotina, na ressaca dos impactos gerados pela emergência médica que todos experienciamos, de forma (mais e menos) intensa. Nesta aparente normalidade, o inusitado passou a ser norma, e o que antes era motivo de indignação, está hoje “normalizado” e passa por convencional.

Vem este intróito a propósito de um título, deste jornal, na edição de 17 novembro: Menos 3,5 milhões de passageiros em 10 anos nos transportes públicos.

A notícia analisa um conjunto de dados estatísticos, no período de uma década, entre 2013 e 2023, na qual é patente a enorme perda de passageiros, menos 3.5 milhões (de 9 para os actuais 5.5 milhões), uma queda de 38%, de acordo com os números do Serviço Regional de Estatística (SREA), sendo que a redução mais acentuada foi registada em São Miguel, com menos 43% de passageiros, seguida da Terceira com menos 30%, tendência que, em 2024, se mantém.

Apesar das perturbações no serviço, e de várias chamadas de atenção, o concurso público para concessão do serviço de transporte colectivo de passageiros na ilha de São Miguel, não foi lançado, mas deverá acontecer “ainda este ano”.

A argumentação para este atraso é justificada pela complexidade do processo, e por opções técnicas, relativas à renovação de frotas e para o “grande desígnio da descarbonização”. Em nenhum momento ouvimos falar de passageiros, e do “calvário” por que passa quem (diariamente) utiliza transportes públicos.

Como tem sido notícia, têm existido alguns condicionalismos na prestação do serviço de transporte, e os motoristas já tornaram público o seu descontentamento, na justa reivindicação pela melhoria das suas condições de trabalho, fazendo com que, não raras vezes, horários e itinerários sejam suprimidos sem que o utente tenha sido informado, ou seja comunicada uma alternativa, muito menos, uma compensação, por parte dos concessionários (que contam com o beneplácito das autoridades).

Importaria que o novo concurso público de passageiros de São Miguel (60% do total dos utentes da região), tivesse em linha de conta os seus utilizadores. Será que já ouviram o que têm a dizer?

De igual modo, não deveríamos questionar a concessão de um serviço que perdeu quase 40% dos seus utentes, seja realizado nos mesmos moldes sem que haja uma profunda alteração dos seus pressupostos, e sobre as razões que estão na génese desta redução, ou estamos dispostos a pagar por um “serviço fantasma”?

Por estes dias, já ninguém se recorda do projecto da central de camionagem (no centro) de Ponta Delgada, que não passou de uma proposta inconsequente (e irreflectida). No entanto, o tempo apenas provou que não existia uma estratégia, nem uma real preocupação com a vida dos munícipes do concelho mais populoso (e dos residentes da maior ilha dos Açores). Apesar da gestão autárquica ser a mesma há mais de 30 anos, está tudo quase na mesma, e os desafios à mobilidade, na cidade e no concelho, são enormes. Não existe um plano rodoviário condizente com as necessidades actuais, nem uma resposta adequada, e concertada, para a fluidez que se exige.

Deixo esta questão para reflexão, qual o investimento público (prioritário) que absorve 12,6% do PRR confiado aos Açores (92 de 725 milhões de euros)? Estradas (ou circulares), registadas como “circuitos logísticos”.

Continuamos a privilegiar a utilização do automóvel, em detrimento do transporte público, inclusive, a quem nos visita, uma vez que os turistas são automaticamente reencaminhados para o carro de aluguer que pulula por aí…

Enquanto não ultrapassamos este modelo de desenvolvimento assente em desígnios do passado, dificilmente poderemos consubstanciar um (novo) futuro.

[+] publicado na edição de 26 novembro 2024 do Açoriano Oriental