domingo, 1 de dezembro de 2024

Transporte colectivo (sem) passageiros








O período pós-pandémico, convencionou chamar-se “novo normal”, a retoma de uma nova rotina, na ressaca dos impactos gerados pela emergência médica que todos experienciamos, de forma (mais e menos) intensa. Nesta aparente normalidade, o inusitado passou a ser norma, e o que antes era motivo de indignação, está hoje “normalizado” e passa por convencional.

Vem este intróito a propósito de um título, deste jornal, na edição de 17 novembro: Menos 3,5 milhões de passageiros em 10 anos nos transportes públicos.

A notícia analisa um conjunto de dados estatísticos, no período de uma década, entre 2013 e 2023, na qual é patente a enorme perda de passageiros, menos 3.5 milhões (de 9 para os actuais 5.5 milhões), uma queda de 38%, de acordo com os números do Serviço Regional de Estatística (SREA), sendo que a redução mais acentuada foi registada em São Miguel, com menos 43% de passageiros, seguida da Terceira com menos 30%, tendência que, em 2024, se mantém.

Apesar das perturbações no serviço, e de várias chamadas de atenção, o concurso público para concessão do serviço de transporte colectivo de passageiros na ilha de São Miguel, não foi lançado, mas deverá acontecer “ainda este ano”.

A argumentação para este atraso é justificada pela complexidade do processo, e por opções técnicas, relativas à renovação de frotas e para o “grande desígnio da descarbonização”. Em nenhum momento ouvimos falar de passageiros, e do “calvário” por que passa quem (diariamente) utiliza transportes públicos.

Como tem sido notícia, têm existido alguns condicionalismos na prestação do serviço de transporte, e os motoristas já tornaram público o seu descontentamento, na justa reivindicação pela melhoria das suas condições de trabalho, fazendo com que, não raras vezes, horários e itinerários sejam suprimidos sem que o utente tenha sido informado, ou seja comunicada uma alternativa, muito menos, uma compensação, por parte dos concessionários (que contam com o beneplácito das autoridades).

Importaria que o novo concurso público de passageiros de São Miguel (60% do total dos utentes da região), tivesse em linha de conta os seus utilizadores. Será que já ouviram o que têm a dizer?

De igual modo, não deveríamos questionar a concessão de um serviço que perdeu quase 40% dos seus utentes, seja realizado nos mesmos moldes sem que haja uma profunda alteração dos seus pressupostos, e sobre as razões que estão na génese desta redução, ou estamos dispostos a pagar por um “serviço fantasma”?

Por estes dias, já ninguém se recorda do projecto da central de camionagem (no centro) de Ponta Delgada, que não passou de uma proposta inconsequente (e irreflectida). No entanto, o tempo apenas provou que não existia uma estratégia, nem uma real preocupação com a vida dos munícipes do concelho mais populoso (e dos residentes da maior ilha dos Açores). Apesar da gestão autárquica ser a mesma há mais de 30 anos, está tudo quase na mesma, e os desafios à mobilidade, na cidade e no concelho, são enormes. Não existe um plano rodoviário condizente com as necessidades actuais, nem uma resposta adequada, e concertada, para a fluidez que se exige.

Deixo esta questão para reflexão, qual o investimento público (prioritário) que absorve 12,6% do PRR confiado aos Açores (92 de 725 milhões de euros)? Estradas (ou circulares), registadas como “circuitos logísticos”.

Continuamos a privilegiar a utilização do automóvel, em detrimento do transporte público, inclusive, a quem nos visita, uma vez que os turistas são automaticamente reencaminhados para o carro de aluguer que pulula por aí…

Enquanto não ultrapassamos este modelo de desenvolvimento assente em desígnios do passado, dificilmente poderemos consubstanciar um (novo) futuro.

[+] publicado na edição de 26 novembro 2024 do Açoriano Oriental