O período pós-pandémico, convencionou chamar-se “novo normal”, a retoma de uma nova rotina, na ressaca dos impactos gerados pela emergência médica que todos experienciamos, de forma (mais e menos) intensa. Nesta aparente normalidade, o inusitado passou a ser norma, e o que antes era motivo de indignação, está hoje “normalizado” e passa por convencional.
Vem este intróito a propósito de um título, deste jornal, na
edição de 17 novembro: Menos
3,5 milhões de passageiros em 10 anos nos transportes públicos.
A notícia analisa um conjunto de dados estatísticos, no
período de uma década, entre 2013 e 2023, na qual é patente a enorme perda de
passageiros, menos 3.5 milhões (de 9 para os actuais 5.5 milhões), uma queda de
38%, de acordo com os números do Serviço Regional de Estatística (SREA), sendo
que a redução mais acentuada foi registada em São Miguel, com menos 43% de
passageiros, seguida da Terceira com menos 30%, tendência que, em 2024, se
mantém.
Apesar das perturbações no serviço, e de várias chamadas de
atenção, o concurso público para concessão do serviço de transporte colectivo
de passageiros na ilha de São Miguel, não foi lançado, mas deverá acontecer “ainda este ano”.
A argumentação para este atraso é justificada pela
complexidade do processo, e por opções técnicas, relativas à renovação de
frotas e para o “grande desígnio da descarbonização”. Em nenhum momento ouvimos
falar de passageiros, e do “calvário” por que passa quem (diariamente) utiliza transportes
públicos.
Como tem sido notícia, têm existido alguns condicionalismos
na prestação do serviço de transporte, e os motoristas já tornaram público o
seu descontentamento, na justa reivindicação pela melhoria das suas condições de
trabalho, fazendo com que, não raras vezes, horários e itinerários sejam
suprimidos sem que o utente tenha sido informado, ou seja comunicada uma
alternativa, muito menos, uma compensação, por parte dos concessionários (que
contam com o beneplácito das autoridades).
Importaria que o novo concurso público de passageiros de São
Miguel (60% do total dos utentes da região), tivesse em linha de conta os seus
utilizadores. Será que já ouviram o que têm a dizer?
De igual modo, não deveríamos questionar a concessão de um serviço que perdeu quase 40% dos seus utentes, seja realizado nos mesmos moldes sem que haja uma profunda alteração dos seus pressupostos, e sobre as razões que estão na génese desta redução, ou estamos dispostos a pagar por um “serviço fantasma”?
Por estes dias, já ninguém se recorda do projecto da central de camionagem (no centro) de Ponta Delgada, que não passou de uma proposta inconsequente (e irreflectida). No entanto, o tempo apenas provou que não existia uma estratégia, nem uma real preocupação com a vida dos munícipes do concelho mais populoso (e dos residentes da maior ilha dos Açores). Apesar da gestão autárquica ser a mesma há mais de 30 anos, está tudo quase na mesma, e os desafios à mobilidade, na cidade e no concelho, são enormes. Não existe um plano rodoviário condizente com as necessidades actuais, nem uma resposta adequada, e concertada, para a fluidez que se exige.
Deixo esta questão para reflexão, qual o investimento público
(prioritário) que absorve 12,6% do PRR confiado aos Açores (92 de 725 milhões
de euros)? Estradas (ou circulares), registadas como “circuitos logísticos”.
Continuamos a privilegiar a utilização do automóvel, em
detrimento do transporte público, inclusive, a quem nos visita, uma vez que os
turistas são automaticamente reencaminhados para o carro de aluguer que pulula por
aí…
Enquanto não ultrapassamos este modelo de desenvolvimento
assente em desígnios do passado, dificilmente poderemos consubstanciar um
(novo) futuro.
[+] publicado na edição de 26 novembro 2024 do Açoriano Oriental