terça-feira, 12 de novembro de 2024

Indolência

"Um Inverno nos Açores e um Verão no Vale das Furnas", escrito pelos irmãos Joseph e Henry Bullar e publicado originalmente em 1841 (o qual merece ser republicado, devidamente editado, e melhor divulgado), é uma narrativa que descreve minuciosamente, em vários capítulos, as experiências de viagem dos autores britânicos durante a sua permanência nos Açores.

Este não é apenas um diário de viagem, é considerado um importante registo histórico e etnográfico sobre a vida no arquipélago, daquele período, no qual dedicam uma atenção especial aos banhos quentes e ao termalismo, em particular, na vivência da população de São Miguel. Os banhos termais são descritos não apenas como uma experiência tranquilizante, mas também como uma prática terapêutica para tratar uma infinidade de maleitas, desde as doenças de pele, problemas respiratórios e de reumatismo.

Vem esta referência literária a propósito de uma intervenção do professor João Carlos Nunes, diretor científico do Instituto de Inovação Tecnológica dos Açores (INOVA), realizada no Azores Tourism Summit. No painel ‘Recursos Hidrotermais e Termalismo nos Açores: Potencial, Oportunidades e Desafios’, defendeu o potencial endógeno associado a este recurso, o qual, no seu entender, não tem sido devidamente explorado, sendo necessário “passar das palavras aos atos e efetivamente tornar o termalismo um produto-chave no turismo dos Açores” (Açoriano Oriental, 4/11/24).

Nas Flores, no Faial, na Graciosa, na Terceira e em São Miguel existem águas termais e recursos capazes de desenvolver o termalismo, cada qual com “diferentes características”, como um importante activo na qualificação (diversificação e complementaridade) da actividade turística e na capacitação do turismo de saúde e bem-estar. Bem como, seguindo o exemplo de práticas ancestrais, na assumpção de boas práticas e na melhoria dos cuidados de saúde prestados aos residentes.

Para João Carlos Nunes, este recurso não se esgota num único uso, pode e deve ser empregue em “sistemas de aquecimento ambiental e em áreas como a dermocosmética ou a farmacologia”.

Quando falamos de sustentabilidade ambiental, deve estar implícito o compromisso da exploração racional dos recursos naturais que estão ao nosso dispor, no respeito por um forte viés identitário e cultural mas, simultaneamente, de cariz inovador.

Ao analisarmos as tendências mundiais associados a este tipo de turismo, nomeadamente, através do trabalho desenvolvimento pelo GlobalWellness Institute (GWI) ou a European Spas Association (ESPA), podemos conferir que existe uma opção crescente na procura turística por destinos de saúde, bem-estar e lazer em estreita relação com a natureza.

O investimento realizado não tem sido consistente e, há uns anos a esta parte, foi abandonado (e/ou negligenciado). Independentemente da autoria da iniciativa, o que importa aos poderes instituídos é desenvolver, e nutrir, um recurso diferenciador, e atractivo, para o visitante e, sobretudo, para quem aqui reside.

No roteiro turístico, os Açores são, hoje, maioritariamente reconhecidos, por um imaginário construído, no século XIX, pelos ‘gentlemen farmers’, na introdução de novas culturas (ananás, chá), no desenvolvimento de uma paisagem humanizada (extractiva) e pela introdução de múltiplas espécies exóticas (Parque Terra Nostra, Jardim António Borges, Jardim José do Canto) que são assumidas como imagens distintivas da nossa exuberância ambiental.

E que legado, destes dias, será perpetuado?

Não será despiciendo recuperar os conselhos dos irmãos Bullar, na medida em que devemos evitar passar o tempo numa “cuidada indolência”, nem cair na ilusão dos efeitos dos “barcos transatlânticos” e de “outros luxos” que transformem, este lugar “pacato e saudável” numa “segunda Madeira”.


[+] publicado na edição de 12 novembro 2024 do Açoriano Oriental

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