«(...) O fim do Ministério da Cultura foi um rude golpe, porque atingiu a cultura na sua dimensão de representatividade e de parceria da vida da comunidade. Relegada para uma secretaria executiva de um processo de emagrecimento dos orçamentos, sem possibilidade de representatividade simbólica nacional e internacional, foi a própria actividade cultural que foi desconsiderada e diminuída na sua expressão e necessidade. Imagine-se que tal acontecia à Defesa ou aos Negócios Estrangeiros para se ter uma comparação dos estragos. A nível internacional, então, é a anulação total de Portugal como parceiro nas expectativas de participação numa comunidade europeia. Os que assim o decidiram têm da cultura uma ideia exclusiva de consumo. Mas cultura não é uma coisa; o termo, que ao longo da história tem tido alterações conceptuais, deverá ser pensado como um sistema de relações entre pessoas, entre comunidades, entre imaginários mediados por objectos mais materiais ou imateriais que os ligam, como ligam economias, bem-estar social, educação, etc. Ao desvalorizar a cultura foi a desvalorização destas relações que se pôs em prática, foi a amputação de parte do sistema de vivências e de imaginários e de economias relacionais que acabaram. Cultura não é um livro ou um espectáculo, é o livro e o espectáculo e a relação prática destes com os leitores, actuando sobre uma biografia, uma economia doméstica, uma tradição mais longa ou mais curta, num tempo específico e num contexto em relação com outros contextos e pessoas, a partir de representações sobre os outros e expectativas e imagens sobre o futuro; é isto a Cultura. Mas é mais adequado, como o propõe Appadurai, substituir o substantivo "cultura" pelo adjectivo "cultural", sendo que este adjectivo resulta de múltiplos agentes e enunciadores, onde cabem múltiplas instâncias de poder do Estado, mas não se esgotam nelas. Contudo, e ao contrário do que se quer fazer crer quanto mais são os actores deste cultural, tanto mais é necessário que o Estado esteja presente; de múltiplas formas conforme o tempo, as disciplinas, o contexto, mas não se pode abdicar do Estado como instância que garante a diversidade e a protecção das escalas de recepção e produção minoritárias. Esta não abdicação é claramente assente na tradição europeia de sustentação da cultura. Benjamin Arditti estudou bem as fórmulas do populismo e concluiu que o populismo é um espectro da democracia e uma interna periferia das políticas democráticas. O populismo é um modo de representação que tem um endereço directo e usa a interpelação do "nós, o povo" por um carismático líder cujas condições de existência são próprias da idade dos media. É o populismo que diz que não podemos construir uma biblioteca porque precisamos de um hospital. Ora, não abdicar do Estado é não aceitar esta falsa e última escolha, porque ambos - o hospital e a biblioteca - são necessários e ambos são possíveis em escalas justas. É, pois, imperioso pensarmos de modo diferente o modo de viabilizar a parte do cultural que depende da produção, da difusão e do institucional pragmático assegurado pelo Estado. (...)»* António Pinto Ribeiro in Y/Público de 28.10.11
** O bold é meu
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