As praxes têm estado no topo da agenda destas últimas semanas. Esta é uma questão antiga e que não pode nem deve ser discutida de forma leviana, nem cega. A tendência nacional para assuntos adormecidos é discuti-los de forma irracional, em que defensores e detractores assumem posições extremadas sobre a natureza dos factos.
Num país de brandos costumes, como é habitual dizer-se, os ânimos nestas discussões, por regra, extravasam em larga medida as convenções instituídas. Uma parte significativa dos media não esclarece, nem procura a verdade; opta, na sua maioria, pela devassa da vida privada de alguns dos intervenientes dos casos mais mediáticos. A culpa deste estado de coisas não parte somente de um ou outro jornalista com menos escrúpulos. Nesta sociedade, em que a ânsia pela fama e pelo reconhecimento público passaram a mediar as relações sociais, os meios justificam os fins, ou o mesmo é dizer: o julgamento na praça pública, a capa do jornal, a reportagem na revista cor-de-rosa ou a abertura do telejornal.
Não aprovo as praxes e sempre me debati contra aqueles que as fixavam, do secundário ao ensino universitário. Em muitos dos seus protagonistas prevalecia (prevalece?), quase sempre, um sentimento revanchista e um direito inalienável a algumas práticas, abusos e prepotência de natureza diversa. Para além da “irreverência” de alguns veteranos, assistia-se, sim, à conquista de um estatuto de poder por parte daqueles que, no ano anterior, tinham sofrido com as manigâncias de quem os tinha praxado. A subida de posto era uma vitória e um direito inquestionável, cujo poder tinha de ser exercido a todo o custo. Não me recordo no Liceu de Antero de Quental, perante os actos mais absurdos e atentatórios, de existir qualquer complacência por parte de funcionários, professores ou mesmo da sociedade civil, aquando da famosa “procissão” pelas ruas da cidade de Ponta Delgada. Era tradição, e por mais idiota que fosse, ninguém a questionava. Tal continua a ser prática corrente. O estranho é discordar e andar desalinhado com as “tradições”. Felizmente frequentei uma universidade onde existia uma “comissão anti-praxe”, onde os actos menos condizentes com a suposta “praxe académica” eram alvo de atenção e intervenção por parte dos diversos órgãos académicos, das associações de estudantes ao presidente da direcção.
Ouvir alguns dos responsáveis de algumas das associações de estudantes do país sobre este assunto é penoso, tal é a bonomia que dizem presidir a este tipo de rituais. Existem sempre excepções mas temo que, neste caso, as boas práticas da “praxe” sejam uma minoria, se é que de todo elas existem.
Cito, a propósito desta discussão, alguém com quem nem sempre estou de acordo mas que aqui sintetiza subliminarmente o frenesim mediático em torno da polémica da “praxe académica”, catapultado pelas mortes dos jovens na praia do Meco e dos eventos que entretanto se sucederam. Escreve, assim, o jornalista José Manuel Fernandes (Público 31.01.14): “Ritual de iniciação, a praxe académica também não é muito distinta de outros rituais de passagem, alguns deles vindos da Antiguidade Clássica. (…) E de afirmação da hierarquia. Não estou com isso a justificar os excessos ou sequer a defender essas muitas e variadas praxes, estou apenas a constatar uma realidade antiga e a lembrar práticas que continuam bem presentes em muitos sectores da sociedade. Os estudantes universitários não são, de repente, as ovelhas ranhosas do Portugal contemporâneo. (…) O que nos indigna é a alarvidade, o sadismo, o sexismo, a porcaria, a violência. Só é pena que não indignemos também por a alarvidade se ter tornado cultura dominante e aceite, por encher a programação das televisões (…)”.
A indignação do Portugal Contemporâneo é feita de ‘likes’ inconsequentes, construídos por ignorância e pela frustração destes dias complexos e confusos, num tempo em que estamos todos, talvez, menos tolerantes ou com menos propensão para tolerar atentados a direitos fundamentais. Se bem que temos sido muito complacentes com a “estupidez” e “atrevimento” da governação que preside este país.
* Publicado na edição de 03/02/14 do
AO
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