O confinamento social a que estamos sujeitos tem revelado, simultaneamente, o melhor e o pior que há em nós.
Temos assistido a um conjunto significativo de iniciativas solidárias para acudir aos menos protegidos, cuja precariedade é mais evidente no modelo económico (e social) vigente, o qual fragiliza quem está mais vulnerável.
Por outro lado, proliferam as teorias da conspiração e a partilha de factos falsos e erróneos que disseminam o ódio (e o medo) pelo outro.
A incerteza dos dias alimenta a oportunidade dos populistas que navegam no éter da timeline à procura de um lugar no pódio do soundbite, no qual “as redes sociais, espelho ampliado e distorcido da realidade, estão cheias de sinais de angústia e ressaca” (Cristina Fernandes, Revista Electra nº 8).
Este não é o tempo de procurar inimigos sem rosto, nem reivindicações anacrónicas destituídas de sentido e representatividade. E com isto não estou a dizer que está tudo bem. Vivemos numa democracia, conquistamos o dever de ser críticos e de manifestar a nossa opinião com absoluto sentido de responsabilidade.
Em dias de pandemia passamos (ainda) mais tempo em redor dos ecrãs, inertes à luz que emana dos vários dispositivos ao nosso dispor.
A sedução é evidente. Perante o imobilismo passamos a socializar, quase em permanência, em formato digital.
Mesmo os utilizadores mais relutantes renderam-se às evidências. E não se iludam, há mesmo um admirável mundo novo que veio para ficar.
Os números dos serviços ‘on demand’ têm atingido valores nunca dantes atingidos e que só se explicam pelo aumento exponencial do consumo de conteúdos (comunicações) em casa.
A título de exemplo, o Barómetro de Telecomunicações da Marktest (28/04/20) indica que são, agora, mais de dois milhões os portugueses que subscrevem plataformas de entretenimento em streaming. E que registou, por exemplo, entre Fevereiro e Abril, mais 800 mil subscritores de serviços como a Netflix ou a HBO.
Este ‘novo normal’ tem levado a concessões sem paralelo na indústria cinematográfica, sendo possível assistirmos, na cerimónia dos Óscares do próximo ano, à nomeação de filmes que foram exibidos (apenas) em ‘streaming”.
Resta saber se esta é uma concessão temporária ou se veio para ficar. Só o mercado o dirá.
Apesar do beneplácito pela profusão da disponibilização de conteúdos culturais/informativos online, há que sublinhar que existem pessoas por detrás do ecrã e que o produto do seu trabalho faz-nos “sentir vivos” mas cuja profissão - à semelhança de muitos outros sectores essenciais que têm sido valorizados por estes dias, é “mal renumerada, com pouco reconhecimento social, mas também (…) alvo de aplausos.” (Vitor Belanciano, 03/05/20).
É importante que a emergência deste estado de coisas não conduza à calamidade do sector cultural, um dos primeiros a fechar e, muito provavelmente, um dos últimos a abrir, apesar do Plano de Desconfinamento apresentado esta semana. É uma área resignada a sucessivos “financiamentos insuficientes” (Cíntia Gil, 10/04/20), pelo que importa, por isto, não cair na tentação de aplicar um corte (cego) nos apoios aos artistas e no financiamento das instituições culturais.
O futuro da cultura em tempo de pandemia dependerá, também, da prioridade que lhe for consignada.
* Publicado na edição de 04/05/20 do Açoriano Oriental
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