«(...) Parece que a Iª República cometeu o grande pecado de ser uma balbúrdia, - mas por oposição a quê? Pelos vistos, deve haver quem ache que o resto do mundo era, naquele primeiro quartel do século XX, uma espécie de pacífico jardim.
Não era; desde ocupantes de cargos eleitos a cabeças coroadas, do primeiro-ministro de Espanha ao arquiduque da Áustria, houve homicídios para todos os gostos naquela época. Não excederam, contudo, a morte massificada da gente comum; entre os anos de 1914-1918 - não tinha a nossa República quatro anos - houve simplesmente uma Guerra Mundial, neste continente e nas suas colónias. Quando essa Grande Guerra e a sua estúpida e inútil mortandade acabou, tinham acabado também vastos impérios: o dos Czares, varrido por duas revoluções e desmembrado; o Austro-Húngaro, despedaçado; e pouco tempo depois o Império Otomano. No culminar desse processo, fez-se o ensaio geral aos genocídios que seriam levados às maiores consequências nos meados do século XX europeu. A República Portuguesa lá aguentou, mas entre a Iª e a IIª Guerra Mundial nasceram o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha, e regimes seus aparentados - como a ditadura nacional em Portugal - um pouco por toda a Europa. Desfez-se o sonho da Sociedade das Nações. Como eloquentemente diz a historiadora Zara Steiner, esta foi a época em que - por quase todo o mundo e sobretudo na Europa - “as luzes falharam”.
Perante isto, - ou melhor, esquecendo isto - há gente que faz da leitura da Iª República uma única lenga-lenga sobre como os líderes políticos portugueses da época eram defeituosos. Pois eram. Sem querer ser preciosista, esse é exatamente o sentido da República: sermos governados por gente imperfeita. Precisamente porque não existe gente perfeita, nem gente que herde a predisposição para governar vitaliciamente um país, o princípio republicano é o de que nem o nascimento nem a classe social devem vedar alguém de eleger e ser temporariamente eleito. Isto é uma coisa boa, e uma coisa simples. Às vezes há coisas assim. É pueril alegar que ser governado pelo filho do rei da Casa de Bragança tivesse sido melhor do que ter sido governado pelos Srs. Teófilo Braga ou Bernardino Machado, mas quer o sentimento anti-progressista que rasguemos as vestes por cada vez que este país deu um salto político. Pelo grande gozo que é “irritar a esquerda”, pratica-se o contorcionismo da mioleira. Mesmo assim, o liberalismo continua a ser melhor do que o absolutismo; e a república melhor do que a monarquia, a democracia melhor do que a ditadura. Melhores porque regimes mais livres e mais iguais, mais próximos do princípio de que a sociedade se pode - e deve - auto-governar. (...)»Leitura obrigatória para esta crónica (e todas as outras) do Rui Tavares, publicada ontem com o Público, sobre aqueles que, em ano de Centenário, 'depreciam' a República e 'suspiram', quiçá, por tempos idos.
* o bold é meu
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