domingo, 24 de abril de 2011

Cultura não pode perder estatuto de ministério

Portugal vai viver, a partir de 5 de Junho, uma nova situação política seja qual for o resultado eleitoral, desde logo porque a precária situação do país impõe compromissos e plataformas de entendimento sem as quais o quadro geral se tornará ainda mais sombrio e preocupante.

Não será aceitável que o novo Governo retire à Cultura a dignidade de uma tutela ministerial, reduzindo-a à dimensão de secretaria de Estado, com tudo o que daí decorre de subalternização e presença menos significativa no núcleo central da decisão política. Essa perspectiva é alarmante, sobretudo se tivermos em conta que a demissão do Governo minoritário do PS impediu que transitassem para a Assembleia da República, para urgente debate e votação, a nova Lei da Cópia Privada e a Lei Antipirataria. Esse atraso implica já prejuízos incalculáveis para os autores e para os artistas no ano corrente e nos seguintes.

Se os novos governantes, sejam eles quais forem, não levarem em conta esta indiscutível urgência, não terão depois legitimidade para pedir aos agentes culturais em geral que dêem o seu contributo para a superação da crise criando mais emprego, mais receita fiscal e mais riqueza em geral.

A União Europeia, no Livro Verde para a Cultura, tornou incontornável esta evidência: a Cultura pode e deve contribuir para gerar soluções que as estruturas do Estado têm obrigação de respeitar, apoiar e incentivar.

A dimensão e a gravidade da crise irão reduzir significativamente os consumos culturais, afectando também, de forma inevitável, as receitas cobráveis pelas estruturas que representam os autores e os artistas.

Os autores, que já viviam uma situação de precariedade, vão enfrentar dificuldades ainda maiores, assistindo à degradação das suas condições de vida e de criação. Se tal acontecer (e é mais do que certo que este quadro é inevitável), Portugal e os portugueses ficarão ainda mais tristes, descrentes e desmotivados.

Se o próximo Governo subalternizar a Cultura na sua estrutura orgânica e a despromover no plano orçamental e da decisão política, irá limitar a sua capacidade de intervenção neste domínio, em nome da austeridade e da contenção de despesas.

Num momento em que o país tem de exportar muito mais do que importa, ignorar o potencial da produção cultural neste domínio será um erro irreparável.

Falando de soluções adoptadas por outro país em crise, será conveniente que se observe a aposta que a Irlanda (onde a Cultura voltou a ter dignidade ministerial) e, em particular, a cidade de Dublin estão a fazer nas actividades culturais, em articulação com o turismo e com o sistema educativo, para melhor poderem enfrentar as dificuldades que os atormentam. Em tempos como o actual, os bons exemplos têm um valor redobrado. Razão tinha o realizador e dramaturgo irlandês Neil Jordan quando escrevia, nas páginas do Morning Ireland, em 11 de Setembro de 2009: "A Igreja falhou; o sistema financeiro falhou; a especulação imobiliária e o comércio falharam; só não falharam a cultura e as artes". Não será tempo de dizermos o mesmo de Portugal, mas agindo em conformidade com esta constatação?

As chamadas "prioridades nacionais" tendem a falar mais alto, mas é imperioso que o novo Governo perceba que são os trabalhos do espírito que reforçam o ânimo colectivo e lembram aos portugueses, que são pessoas e não números, que existirá sempre mais vida para além dos erros graves e dos falsos milagres dos gurus da economia e das finanças. Foram esses e não os criadores culturais e os artistas que nos deixaram na deplorável situação em que hoje estamos.  
 José Jorge Letria in Público de 22 Abr'11

* Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores
** O bold é meu 

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