quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Reflexão (colectiva)

A reportagem do serviço público de rádio e televisão mostra a escassez de bens alimentares nas ilhas das Flores e Corvo, as imagens de prateleiras vazias não deixam ninguém indiferente, em particular, num período (simbólico) como o Natal.

Para além da destruição (quase total) do porto das Lajes das Flores, este é o efeito mais evidente da incapacidade gerada pela inoperacionalidade desta infraestrutura que, apesar do enorme esforço de adequação por parte da entidade que gere os portos da região, tem levado à intermitência do abastecimento regular (por via marítima) do grupo ocidental.

Todos os anos o rigor do inverno torna (mais) difícil as ligações (aéreas e marítimas) com as ilhas mais ocidentais da europa, esta não é uma situação nova para estas populações habituadas que estão à borrasca das intempéries e a dias (consecutivos) de (maior) isolamento.

As comunicações são hoje, felizmente, possíveis através da fibra óptica que torna menos penosa a lonjura que as separa do multibanco mais próximo (que indica como alternativa a deslocação ao Faial, Terceira ou mesmo Santa Maria - não é piada, já o testemunhei).

No entanto, temos de ter consciência que nada será como dantes, e os efeitos da passagem do furacão Lorenzo, pelos Açores, não podem ser considerados como um caso isolado e devem constituir um sinal de alerta para o futuro.

A este respeito devemos encarar com enorme seriedade os efeitos resultantes das alterações climáticas e o seu impacto nas ilhas. Temos aqui um exemplo concreto do que poderá ser o nosso futuro (mais próximo) no que concerne à ocorrência de fenómenos climáticos extremos.

Os furacões poderão assolar o arquipélago de forma mais regular e, para tal, devemos, desde já (se é que já não os temos), pôr em prática planos de contingência (alimentar, por exemplo) para mitigar situações como a que as Flores e o Corvo têm experienciado.

Apesar de todos os esforços envidados, pelas entidades oficiais, locais, municipais, regionais e nacionais, para o restabelecimento da normalidade (possível) àquelas ilhas, desengane-se quem assumir compromissos com prazos irrealistas e soluções impossíveis.

Importa frisar que os danos infligidos por este fenómeno (extremo) ascendem aos trezentos milhões de euros, em todo o arquipélago, os quais levarão anos a ser recuperados. Este não é um assunto que se resolva de um dia para o outro.

O político que intenta retirar dividendos (com recurso a uma calamidade pública) não pode ser uma pessoa idónea. A ética democrática deve ser um valor estimado perante a sistemática desvalorização do compromisso e da palavra, numa realidade paralela e num espaço (online) repleto de ódio, vitimização, notícias falsas, factos alternativos e teorias da conspiração.

Outro dado a destacar desta ocorrência (extraordinária) tem de ver com a importação de produtos agrícolas. Considero que a defesa da nossa sustentabilidade ambiental, também, passará por aqui. Mas será que já medimos a pegada ecológica das batatas e cebolas que nos chegam do exterior? Não será esta uma oportunidade para alterarmos comportamentos e questionar se faz sentido importar vegetais e legumes frescos? E, complementarmente, reduzirmos a nossa dependência alimentar, tornando a nossa existência, efectivamente, mais saudável, sustentável e evitando a rotura de produtos alimentares?

A este propósito cito John Fowler no seu ‘”Diário de um Náufrago nas Flores e no Faial” (IAC, 2017), no qual retrata a vivência na ilha das Flores na primeira metade do século XIX: “têm um solo de invulgar riqueza e fertilidade, produzindo milho indiano, trigo, inhame e batatas e uma oferta abundante de forragem, entre as quais devo incluir o tremoço, criado e cortado para alimentar gado (…) a par com algumas plantações de laranja, maçã, pêras e figos (…)”.

Fica o testemunho histórico para reflexão (colectiva).

* Publicado na edição de 13/01/20 do Açoriano Oriental
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