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Afinal, há alternativas e Carlos César provou-o. O presidente do Governo Regional dos Açores mostrou como é possível encontrar soluções para a crise económica que não passam exclusivamente pelo sacrifício das pessoas e do seu nível de vida. Como é possível encontrar saídas sem que isso ponha em causa os pressupostos políticos e ideológicos que devem mover a esquerda. Como é possível fazer um Orçamento mais parco sem pôr em causa os princípios ético-políticos que devem mover os partidos socialistas, nomeadamente o princípio de que primeiro está o bem-estar das pessoas e o respeito pela dignidade humana.
Pelos vistos, não doeu muito. Apenas foi preciso decidir que o Orçamento do Estado regional açoriano desviava parcialmente verbas do subsídio de seis milhões de euros que ia dar para a construção de dois estádios de futebol privados.
É claro que a atitude corajosa de Carlos César irritou os agentes políticos que têm subscrito a defesa e a prática de orientações político-ideológicas de desconstrução do Estado social, que se inspiram nas teses neoliberais de que a solução do que se convencionou chamar “crise” passa pela diminuição da redistribuição social da riqueza e pela diminuição do nível de vida e dos direitos sociais e laborais da generalidade das populações. Isto, baixando os recursos do Estado social e quebrando o espírito de solidariedade social e intergeracional anónima e colectiva – ao aliviar a carga fiscal sobre as empresas e diminuindo os chamados “custos do trabalho”. E satisfazendo assim os chamados “mercados”, ou seja, a liberdade de mercado e de acção negocial e de conquista de lucros financeiros pelos accionistas (proprietários) das empresas financeiras e de especulação. Tudo, obedecendo ao pressuposto de que só assim se cria riqueza e emprego – um princípio que, aliás, está por demonstrar em Portugal e de que a actual crise é a prova em contrário.
Assim, quando um líder político com autonomia de pensamento e de acção diz não e afirma que há alternativas à imposição de soluções que penalizam as pessoas, saltam para a praça pública os principais agentes da defesa dos interesses dos chamados “mercados”. E isso foi visível quer ao nível do mainstream do que é a opinião publicada, com Vítor Bento e Vital Moreira na primeira fila, quer ao nível do poder institucional, com o Presidente da República, Cavaco Silva, e o primeiro-ministro, José Sócrates – é interessante constatar como Cavaco e Sócrates nunca divergem a fundo nas questões sócio-económicas e como o Presidente, tão interventivo que foi com os seus 13 vetos a diplomas da Assembleia, nunca vetou nenhum que incidisse nas áreas sócio-económicas.
É interessante também perceber o argumentário utilizado por todos os que vieram a terreiro apedrejar Carlos César. É que raia o absurdo, pois ultrapassa o ridículo, vir advogar a inconstitucionalidade da medida. Isto, quando a autonomia governativa e a reserva de soberania das regiões dos Açores e da Madeira e discriminação positiva da insularidade têm décadas em Portugal e são uma conquista do 25 de Abril, consagrada na Constituição de 1976 e que tem sido, aliás, sempre fortalecida a cada revisão, sendo até uma bandeira histórica do PSD.
O ridículo deste estranho coro de casandras aumenta ainda quando se percebe que a sua crítica a César se baseia no argumento de que esta decisão do chefe do governo regional terá posto em causa o princípio constitucional da igualdade. Mas essa desigualdade assumida para benefi ciar os que são discriminados e menos têm não é já praticada pela lei que prevê a atribuição de suplementos salariais compensadores da insularidade, que existe desde os anos 80? Lei que foi de novo regulamentada em 1996, sem que ninguém tivesse, até hoje, levantado a questão da constitucionalidade desta discriminação positiva. Mais duas perguntas: o princípio da igualdade não foi posto em causa ao cortar-se os salários só de alguns trabalhadores: os que ganham acima de determinada verba e trabalham para o Estado? Então, de acordo com esses critérios igualitários, o corte de salários pode deixar de fora as empresas privadas?
O que está de facto em causa é uma questão de ordem puramente político-ideológica que passa por saber que tipo de opções deve o poder político democrático tomar e se os objectivos do projecto político-partidário que os governantes defendem e praticam tem como fim servir as pessoas ou servir os chamados “mercados”. Até porque, convenhamos, neste caso dos Açores o que está em cima da mesa são valores ridículos, em termos do que é a despesa pública açoriana. Falamos de uma verba de três milhões de euros, que representam 0,22 por cento do Orçamento açoriano e que irá contemplar 3700 funcionários, que são os que menos ganham dos que são prejudicados nos seus vencimentos pela decisão do Governo central de cortar salários. A par desta decisão, o Governo de Carlos César decidiu complementar os subsídios de abono de família e abono social de idosos.
Daí que seja cristalina a percepção de que o que tanto irritou os representantes do consenso neoliberal do poder em Portugal foi, precisamente, a afronta à inevitabilidade neoliberal de retirar poder de compra e direitos sociais e laborais às pessoas que esta decisão de Carlos César representa. Assim como é também cristalino que o líder socialista dos Açores mostrou como nada é inelutável e como em política há sempre opções diversas e escolhas que são feitas de acordo com critérios estabelecidos e identificáveis no seu enquadramento ideológico. A questão não é senão um problema político e de coragem, característica central num líder político, a par da autonomia e da capacidade de acção e da assunção clara de quais os motivos político-ideológicos que o movem.
Carlos César mostrou que tem fibra de líder e que tem futuro político. Um dia, quando o actual PS implodir – por força da acção da influência neoliberal que é incompatível com a sua origem –, nas ruínas pós-Sócrates esta atitude de Carlos César será uma referência marcante de como se pode continuar a ser socialista democrático, como se chamavam a si mesmos os fundadores do partido, ou seja, social-democrata. Além de servir os açorianos, César marcou um lugar no futuro.
São José Almeida
Jornalista
in
Público de 11 Dez'10
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