terça-feira, 23 de maio de 2023

O que nos falta

Numa altura em que estamos a viver um momento particularmente trágico, o fim da pandemia fez regressar a normalidade (possível) à indústria, que vive do turismo.

O incremento turístico no arquipélago é fruto de anos de investimento e de posicionamento do destino em mercados internacionais. Validado, sobretudo, por marketing, eventos e a certificação de boas políticas ambientais.

O discurso oficial procura legitimação através dos indicadores quantitativos, negligenciando riscos qualitativos agravados, em períodos de maior pressão, apenas, para os actuais níveis de procura, mesmo sabendo que nem todas as ilhas têm o mesmo grau de resposta (e atractividade).

No ecossistema regional, as dinâmicas turísticas não são idênticas, nem lineares, pelo que importaria analisar, como é que os residentes encaram o impacto dos sobrecustos inerentes ao incremento turístico no seu orçamento familiar (e qualidade de vida).

A tão propalada sustentabilidade, económica e ambiental, só se verifica se o Turismo “for bom para os locais e para os residentes.” Citando o filósofo francês Frédéric Neyrat, “temos de ser utópicos, não de forma ingénua, mas para revelar a sociedade em que vivemos e para revelar o que nos falta.”

[+] publicado na edição de 12 maio 2023 do Açoriano Oriental

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Igualdade

A discussão sobre a igualdade de género não se resume a uma questão da falta de representatividade em lugares institucionais, e se os mesmos devem, ou não, ser preenchidos por quotas.

As quotas já se provou ser um mal necessário, porquanto não devia sequer existir um recurso para garantir algo basilar, sendo que, obviamente, o mérito extravasará qualquer quota, seja ela de género ou de outra coisa qualquer.

Nos Açores, as mulheres representam 51,2% da população (para um total de 236.413 residentes) e, na última década, assistimos a uma progressão significativa da sua integração na vida activa atingindo as 55.746 (46%) para um universo de 121.164 indivíduos (em 1996 era de apenas 35%).

Apesar das enormes conquistas, da sua centralidade e importância, a secundarização do papel da mulher na sociedade açoriana é, ainda, algo enquistado a que urge dar prioridade.

A este propósito, a Assembleia Legislativa dos Açores tornou pública a lista de agraciados no Dia da Região, das 27 insígnias honoríficas açorianas previstas, 15% destinam-se a mulheres, uma a título póstumo.

Simbolicamente, há homenagens que só devem acontecer em vida.

+ publicado na edição de 28 abril 2023 do Açoriano Oriental

sexta-feira, 10 de junho de 2022

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Cultura (em tempo de pandemia)

A pandemia afectou todos, sem excepção, mas uns sofreram, mais do que outros, os efeitos nas suas cadeias de valor.

Pelas vezes que já foi referido, mais parece um lugar-comum dizer-se que o sector cultural foi um dos sectores económicos mais afectados. 

Por forma a corporizar o eventual carácter abstracto desta afirmação, a GESAC (Grupo Europeu de Sociedades de Autores e Compositores) solicitou à consultora EY a realização de um estudo sobre a situação económica das indústrias culturais e criativas (ICC) no contexto europeu. Este estudo revelou, por exemplo, que as ICC empregam mais do dobro dos activos do que as indústrias automóveis e das telecomunicações juntas e representavam, antes da pandemia, cerca de 4,4% do PIB da UE em termos de volume de negócios. 

Embora não existam dados concretos para o efeito das restrições sanitárias nas receitas da cultura nos Açores, podemos seguir-nos pelos dados recolhidos, por este estudo, no qual é demostrado que as perdas do sector somam, em termos europeus, cerca de 31% (199 mil milhões de euros).

Nas contas feitas pela EY, só o sector dos videojogos escapou à perda de receitas culturais, tendo mesmo visto as receitas subir 9%. As quebras são mais acentuadas, como seria expectável, nas artes performativas, onde estão incluídos o teatro e a dança, cuja quebra de receitas foi de 90%. A segunda área mais afetada é a da música, onde as receitas recuaram 76% (em 2020). O estudo analisou, ainda, as diminuições na área das artes visuais (-38%), na arquitectura (-32%), na publicidade (-28%), nos livros (-25%) ou na área da imprensa, nomeadamente, nos jornais e revistas, onde as receitas terão recuado 23%.

Perante a paragem abrupta foi necessário encontrar estratégias de sobrevivência, sendo que num primeiro momento, “ficámos sem reação" (Isabel Craveiro, 24/02/21).

A actividade artística foi totalmente repensada para responder aos desafios de um tempo novo. Neste processo de adaptação, nem todos estavam preparados (orçamentalmente e tecnicamente), tanto instituições como espectadores. A passagem para a dimensão online revelou ser, esta sim, um processo transitório, que permitiu manter o trabalho para alguns artistas e a “relação com o público”.

Considero que esta foi uma solução de recurso para um tempo desesperado. Uma coisa não substitui a outra, mas devemos retirar os melhores ensinamentos desta experiência, sendo certo que a dimensão visual é, hoje, uma parte importante da comunicação das instituições, nesta relação com os seus diferentes públicos, cada vez mais suspensos no(s) ecrã(s).

Este será um dos maiores desafios com que se confrontam as instituições culturais - a de renovar as plateias e fazer com que os mais novos experienciem um espectáculo em sala.

Noutro capítulo, no que que concerne a todos quantos ficaram sem rede, de um dia para o outro, este “novo normal” tornou mais evidente o carácter precário de quem trabalha de forma profissional no sector da cultura. Esta situação não é nova, não é de agora. Tendemos a depreciar estes trabalhadores, não valorizando o seu trabalho, encarando a cultura como um hobby.

Este é um caminho que tem vindo a ser percorrido, mas parece-me fundamental tornar mais visível a complexidade inerente à criação cultural, através de um trabalho de mediação junto do grande público, evidenciando o papel que a cultura tem nas nossas vidas, amplamente presente ao longo da pandemia (nas suas mais variadas formas).

A importância da cultura, bem como a sobrevivência do tecido criativo, está sempre presente no discurso institucional, sobretudo, quando se trata de anunciar os apoios de emergência por forma a debelar os efeitos da pandemia. Contudo, a realidade dos números acaba sempre por lhe atribuir a sua verdadeira dimensão.

O mapeamento do sector cultural, na região e no país, foi realizado no meio da pandemia. Aqui reside parte do problema, na medida em que transparece o reconhecimento (paradoxal) do desconhecimento da Cultura sobre o sector que tutela.

Falamos dos artistas, mas, não raras vezes, esquecemos quem torna possível quem brilha em palco, pelo que a paragem da actividade afectou, sobremaneira, um conjunto de profissionais que vivem dos festivais (festas) de verão, muitas das vezes de forma sazonal, que viram a sua situação profissional tornar-se uma incógnita.

Nestas situações, há sempre quem não perca tempo em ajudar o próximo. Aqui, enalteço o trabalho realizado pela União Audiovisual, na identificação das necessidades, e no fazer chegar a ajuda, a quem dela necessitasse.

A recuperação que importa implementar, neste sector em particular, implica, invariavelmente, financiamento público (e privado), conferindo-lhe, desde logo, outra dignidade orçamental, para desempenhar adequadamente o seu papel. 

Neste sentido, devemos “preservar o essencial, melhorar o muito que ainda está aquém do desejável e inventar o tanto que ainda está por fazer”. (Tiago Rodrigues, TNDM II, 2021).


+ Publicado na revista "As 100 Maiores Empresas dos Açores 2020" publicada a 10/12/2021 pelo Açoriano Oriental 
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sexta-feira, 23 de julho de 2021

Debate (público)

Na passada semana, a RTP-Açores promoveu um debate (em jeito de conversa) sobre o impacto da pandemia no sector cultural do arquipélago.

O tempo foi (e será sempre) curto para falar de todas as questões que preocupam quem trabalha neste sector. No ecrã, este espaço parece (ainda) menor. Tal como na geografia das ilhas, a Cultura agrega múltiplos agentes, com áreas de actuação muito distintas, sendo que, inclusive, dentro de cada uma delas, a realidade da actividade e da dinâmica cultural é, também ela, singular.

Importa frisar que estamos a falar de contextos muito específicos, nem sempre compreendidos no todo nacional, e que a distância (interna) torna mais evidente as assimetrias que, inevitavelmente, se manifestam na relação que estabelecemos entre instituições (e artistas).

Apesar da fragilidade porque passa o sector (situação que não é nova, mas que se adensou em dias de pandemia), existem sinais que apontam caminhos de futuro e que importa ler, sobretudo, quando passou a ser fundamental consolidar recursos humanos (técnicos e criativos) com morada permanente na região.

O combate à intermitência e à precariedade, também, se faz por aqui. Não podemos ter (apenas) estruturas (instituições) com estatuto profissional e ignorar os artistas como profissionais de plenos direitos.

Apesar de toda a incerteza provocada pela pandemia, existiram, igualmente, algumas conquistas, a começar, por exemplo, pelo Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura e pela implementação da Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (RTCP). Estes não são modelos fechados, mas são um princípio.

A pandemia não atingiu todos por igual e muitos músicos (técnicos e empresas), sobretudo estes, ficaram, de um dia para o outro, sem qualquer tipo de rendimento.

Existem apoios, mas a fragilidade da informalidade, que afecta muitos agentes, deste sector, tornou, em muitos casos, inacessível a sua eficácia.

Para além das questões de ordem económica e social, imperativas num momento com este, existem questões que se colocam ao nível da dinâmica da actividade cultural e que põem em risco uma retoma de práticas descontinuadas por esta paragem abrupta e que, neste momento, já soma um ano e meio.

Esta questão é ainda mais pertinente num contexto em que ultimámos uma candidatura de Ponta Delgada, e dos Açores, a Capital Europeia da Cultura em 2027.

Para podermos garantir o amanhã, importa agir com eficácia no contexto presente.

A suspensão da actividade artística coloca em risco um conjunto alargado de agentes, desde filarmónicas, a grupos corais ou a escolas de dança, pelo simples facto das regras sanitárias (que são respeitadas) tornarem impraticável a sua prática.

Nos últimos meses, foi encetado um diálogo (com as autoridades regionais de saúde) no sentido de tornar possível o regresso das actividade culturais (uma aspiração legítima e em conformidade com a evolução da situação sanitária).

Na passada quinta-feira foi, finalmente, alcançado o desfecho pretendido, porquanto, a partir deste sábado, será possível a realização de “eventos públicos, culturais ou desportivos (…) com público” e “em qualquer nível de risco, apenas com limitação de lotação”.

O debate público, em torno, destas e de outras matérias de relevante interesse cultural, não pode, nem deve ficar circunscrito a uma agenda periférica, mas é condição fundamental da nossa existência enquanto comunidade autónoma (que se quer cívica e socialmente participativa). 

+ Publicado na edição de 10/07/21 do Açoriano Oriental 
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terça-feira, 6 de julho de 2021

O tempo que foge não é habitável

O país desconfinou na incerteza do dia seguinte. Não por confiança mas, sobretudo, por (imperiosa) necessidade. 

Ao fim de dois meses, os casos voltaram a subir e a pressão económica (essencialmente turística) fez disparar os internamentos, sendo que (agora) a gravidade e a letalidade são (hipoteticamente) menores (e terão como alvo preferencial grupos etários mais jovens). 

O número (diário) de vítimas associadas à Covid-19 passou a ser uma banalidade, remetida a nota de rodapé do boletim noticioso (à hora de jantar). 

O (alto) risco mantém-se. Mas do pânico inicial (vivenciado em abril e maio do tempo que celebramos ter terminado), passamos à saturação colectiva e ao egoísmo narcisista (à porta fechada). 

Ao contrário do que possamos desejar, a imunidade de grupo não (nos) garante a ausência de casos e o contágio. 

Contudo, há quem considere que a vacina é a (sua) bolha de salvação (e cura eterna), contrastando com aqueles que a recusam por medo (de um destino pior do que aquele que lhes é prometido), alimentando um rol (absurdamente credível) de teorias da conspiração (facilmente propagável no scrolling da timeline).  

O facto é que “uma única dose da vacina não confere um grau de protecção tão elevado e que, por isso, é necessário que as pessoas mantenham todos os cuidados, já mesmo depois de serem inoculadas” (Público,23/06/21).

Um dado que convém (sempre) relembrar, reiterando a importância de aceder a informação (credível).

No arquipélago, o processo de vacinação tem permitido um relaxamento das medidas sanitárias, em particular, nas ilhas onde foi possível ter a colaboração da task-force (para o plano de vacinação contra a COVID-19 em Portugal).

Por ser a maior ilha, com mais população, São Miguel tem assistido a um incremento do processo de vacinação, sem que, no entanto, estes dados tenham (ainda) influência na diminuição no número de casos (positivos) que a continuam a martirizar.

O comprometimento de agir em conformidade (com as regras impostas) é algo que cabe, a cada um de nós, cumprir, na individualização de um acto colectivo (que todos atinge por igual).

O apelo à responsabilidade individual impõe-se mas temos de aprender a viver com uma realidade (nova) que não desaparecerá por decreto.

Para tal, temos de equacionar a retoma progressiva, dentro da razoabilidade possível, de todos os quadrantes da nossa vida colectiva.

Neste sentido, importa encarar com seriedade a reabertura do sector cultural, tal como anunciado na passada quinta-feira pela Secretária Regional da Saúde, impondo medidas que, atendendo à evolução da pandemia, possam permitir o regresso ao(s) palco(s).

Mais do que uma excepcionalidade, é solicitado que seja aplicado o mesmo critério que tem permitido que outros sectores económicos possam funcionar (mesmo que o nível de risco concelhio seja elevado).

Por uma questão de equidade e coerência, parece-nos fundamental a assumpção deste compromisso.

Simbolicamente, seria o reconhecimento que “o tempo que foge não é habitável” (Byung-Chul Han, 2019).

+ Publicado na edição de 26/06/21 do Açoriano Oriental 
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quarta-feira, 30 de junho de 2021

Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses

A lei que cria a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (RTCP) entrou em vigor em 2020 mas só agora foi publicada a sua regulamentação. 

O objectivo da RTCP é que seja composta, essencialmente, pelos teatros e cineteatros existentes em todo o território nacional (incluindo Açores e Madeira) que pretendam aderir voluntariamente e que estejam devidamente credenciados. 

Importa salientar que esta lei está destinada a espaços que promovam uma actividade permanente, estejam dotadas de uma estrutura organizacional (recursos técnicos e humanos) para no âmbito da sua acção realizar regularmente “espetáculos de natureza artística”, a “exibição cinematográfica” e “outras atividades culturais”. 

Para que tal possa acontecer, as entidades interessadas têm de credenciar as suas estruturas, entre 18 junho e 16 julho de 2021, através de formulário disponível no portal da Direção-Geral das Artes (DGARTES), entidade responsável pela credenciação. E quem é que pode solicitar esta credenciação? 

Qualquer entidade, singular ou coletiva, de direito público ou privado, que seja proprietária de um teatro, cineteatro ou outro equipamento cultural (auditório, blackbox, sala polivalente/modular ou outro espaço, convencional ou não, dedicado à programação artística), cuja função predominante seja a apresentação de projetos de artes performativas e/ou de cruzamento disciplinar e de artes visuais, inclusive cinema e audiovisual.

Contudo, existem requisitos fundamentais para validar esta credenciação que passam, essencialmente, pelas autorizações e regulamentos legais para o seu funcionamento, bem como, a estratégia programática ou uma equipa funcional adaptada às instalações e ao equipamento disponível. 

De igual modo, é requerido que os espaços a credenciar devem ter, pelo menos, dois anos de atividade cultural e artística com programação regular, cuja avaliação, devido à pandemia, não contempla os anos de 2020 e 2021.

Estes são passos fundamentais para poder aceder ao financiamento disponível, na medida em que apenas os equipamentos credenciados, nesta primeira fase, poderão apresentar candidaturas ao concurso de apoio à programação que abre a 27 de setembro. 

Esta é uma política inédita na área cultural, na medida em que, pela primeira vez em Portugal, o Estado irá financiar a programação regular de uma rede nacional de equipamentos culturais na área das artes performativas. 

No caso particular dos Açores, é fundamental que consigamos credenciar os espaços e, por essa via, seja possível o tão desejável (e fundamental) reforço orçamental que nos permitirá uma melhor acção na pluralidade da fruição e da criação artística (regional). 

Através da participação em fóruns de discussão nacional, acompanhei de perto a materialização desta Rede, sobretudo, afirmando a imperiosa necessidade da sua extensão às regiões autónomas, corporizando aquilo que está na sua génese, como “instrumento estratégico fundamental para o combate às assimetrias regionais e para o fomento de coesão territorial no acesso à cultura e às artes.”

Complementarmente, e no âmbito da candidatura de Ponta Delgada (e dos Açores) a Capital Europeia da Cultura 2027, devemos construir as bases para um entendimento alargado, entre municípios e entidades governamentais, por forma a garantir uma coisa aparentemente simples mas que não há forma de acontecer: gerar uma rede regional (mesmo que informal) e fazer circular (internamente) artistas e projectos.

+ Publicado na edição de 12/06/21 do Açoriano Oriental 
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sábado, 5 de junho de 2021

Previsibilidade

Na reunião de peritos, no INFARMED, para avaliação da situação epidemiológica de covid-19, ficamos a saber que 272 pessoas foram infectadas com o vírus depois da vacinação completa e que, deste grupo, 15 tiveram que ser internadas. Felizmente, não se registaram óbitos.

Neste momento, o país tem metade da letalidade da que tinha há um ano, num período em que tem, paradoxalmente, o dobro da incidência registada na mesma altura (2020).

Os efeitos da pandemia mudaram e é razoável assumir, presumo, que parte desta alteração se explica ‘lato sensu’ pelo progresso do processo de vacinação e às medidas de contenção da pandemia.

A vacinação parece conter o processo de contágio dos mais vulneráveis, dá-nos mais segurança e, eventualmente, algum excesso de confiança. Com estes novos dados, fará sentido manter as medidas no seu modo mais restritivo ou devemos alterar os critérios?

Não obstante isto, continuam a existir muitas dúvidas e incertezas em torno da evolução da pandemia, nomeadamente, o tempo da nossa imunidade após a vacinação, a influência das novas variantes (na sua propagação) ou até a eficácia das vacinas.

O exemplo das ilhas Seychelles tem sido amplamente discutido, na medida em que apesar de serem o país com a maior taxa de vacinação em todo o mundo (70%), foram obrigados a impor, novamente, restrições para conter a pandemia.

O tempo nesta, como em outras matérias, não será bom conselheiro, sendo que a urgência das respostas pode traduzir-se em leituras pouco fidedignas e comprometer a resposta científica para responder, por exemplo, à questão: “qual está a ser o real impacto da vacinação?”.

No entanto, há quem defenda novas abordagens, sobretudo, na alteração da “matriz de observação desta doença”, a qual “vai ter de passar obrigatoriamente por um outro patamar que tem a ver com a gravidade e não tanto com a simples contagem de cabeças, a contagem de casos” (Paulo Santos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto - Público, 28/05/21).

Considero que esta deva ser a abordagem a seguir no arquipélago, tal como preconizado nesta reunião do INFARMED, privilegiando diferentes “patamares de desconfinamento” que correspondem à adopção de medidas diferenciadas, numa “estratégia faseada para evitar ter de recuar, para garantir que se ganha liberdade em segurança”.

Obviando o que hoje acontece - num movimento pendular de difícil acompanhamento (no qual passamos de verde a vermelho no espaço de uma semana) - é necessário atribuir previsibilidade à retoma económica e aumentar os níveis de confiança na sociedade.

Os recursos disponíveis para responder às empresas, às famílias e aos trabalhadores independentes (fundamentais e necessários) são finitos e transitórios, pelo que devemos trabalhar no sentido de conferir maior assertividade nas medidas a adoptar, permitindo retomar gradualmente (e em segurança) a actividade económica (no seu todo) e, por conseguinte, a nossa vida colectiva.

+ Publicado na edição de 29/05/21 do Açoriano Oriental 
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terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A tradição (do amanhã)

No passado dia 23 de novembro, o Ministério da Cultura, através do Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais (GEPAC), abriu formalmente o convite para a apresentação de candidaturas para a representante portuguesa a Capital Europeia da Cultura em 2027.

Neste momento, temos um conjunto significativo de municípios que já manifestaram a sua intenção de se candidatar - Aveiro, Braga, Coimbra, Évora, Faro, Funchal, Leiria, Guarda, Oeiras e Viana do Castelo -, sendo que, na maior parte deles, já existe uma estrutura a trabalhar no projecto há, pelo menos, dois anos.

Portugal já recebeu o título de Capital Europeia da Cultura por três ocasiões, Lisboa, em 1994, Porto, em 2001, e Guimarães, em 2012. Em qualquer um destes casos, é inegável o salto qualitativo que a organização deste desafio, deu à cidade e à região que o acolheu, com claros benefícios na dinamização das estruturas criativas locais e na reafirmação da sua importância no mapa cultural, nacional e internacional. Para além, como é óbvio, dos benefícios derivados na dinamização económica, quer por via do incremento do turismo cultural, quer pela valorização patrimonial associada a um processo de revitalização urbana dos seus centros históricos.

Apesar de, em tempos idos, Ponta Delgada ter manifestado a intenção de apresentar uma candidatura, e desta estar prevista no seu Plano Estratégico de Desenvolvimento 2014-2020, desconheço se existe algum processo a decorrer e se estão, porventura, envolvidos outros municípios da região. O que sabemos é que, neste momento, a um ano do prazo desta candidatura, o tempo corre a nosso desfavor, sendo que este é um processo moroso marcado por diversas fases de avaliação e pré-selecção e cuja decisão final só será conhecida, expectavelmente, no final de 2022.

Num momento em que a cultura está, na esmagadora maioria das suas expressões, suspensa por força maior, considero que este objectivo deveria servir de movimento catalisador para repensar o sector e capacitá-lo, de uma vez por todas, como elemento fulcral no designado desenvolvimento sustentado, integrado e transversal, desta região.

Esta intenção pode, e deve, transportar um carácter utópico subjacente à própria candidatura, uma vez que este acontecimento não se extingue no acolhimento de iniciativas nas infraestruturas requalificadas ou geradas para a apresentação das propostas programadas.

Pela nossa dimensão, à semelhança de um projecto idealizado em 2010, esta realização deverá estar alicerçada na região como um todo ou estar pensada, de forma mais pragmática face ao calendário, à escala da ilha.

O carácter diferenciador do posicionamento geográfico (ultra)periférico, sedimentado pela confluência cultural gerada pelo encontro de culturas, que aqui se unificaram, será motivo mais que suficiente para congregar a comunidade artística e construir uma sólida candidatura.

Mais do que um mero instrumento de promoção turística, que, também, o é, esta ambição será, sobretudo, uma forma de reposicionamento daquilo que queremos ser no futuro, de revalorização das idiossincrasias, muitas das vezes motivo de discórdia, mas que nos definem como comunidade.

Por estes dias, o apoio à cultura passou à condição de emergência. A contemporaneidade, hoje, será a tradição do amanhã.

+ Publicado na edição de 11/12/20 do Açoriano Oriental 
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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

A Cultura é segura

O aumento de casos de covid-19 na região fez regressar o receio de um novo confinamento, o que não é desejável, e ninguém, digo, quer que aconteça.

Não obstante, com a proliferação das cadeias de transmissão, inevitavelmente, com maior incidência em São Miguel, foi implementado um conjunto de recomendações que restringem a actividade de múltiplos sectores, todos eles em luta permanente contra as enormes adversidades e contingências a que as medidas sanitárias obrigam.

Nos Açores, para salvaguarda da saúde pública, foi decidido que as actividades culturais, promovidas e acolhidas por instituições públicas, deviam ser suspensas até 30 novembro.

Em território continental, apesar da situação epidemiológica estar distante daquela em que nos encontramos – quer nos números, quer na pressão exercida sobre o sistema de saúde –, a programação cultural tem sido mantida e adaptada às limitações inerentes, por exemplo, ao estado de emergência declarado, nomeadamente, com as alterações nos horários de início dos espectáculos, para respeitar o recolher obrigatório, que vigora em numerosos concelhos do país.

A defesa da saúde (pública) tem sido uma prioridade do governo que agora cessa funções e será, com certeza, do que lhe irá suceder.

Respeito as decisões que têm sido tomadas, mas questiono a pertinência de encerrar um sector que tem sido fortemente fustigado e limitado em todo este processo, quase sem alternativas de manutenção da sua actividade, o qual cumpre com todas as normas sanitárias impostas, desde o distanciamento físico, à higienização dos espaços e ao uso obrigatório de máscara, durante todo o tempo em que decorre um espectáculo. Qual a diferença que assiste à abertura de uma sala de espectáculos, de um museu ou de um restaurante? A segurança com ou sem máscara?

Com isto não procuro colocar em confronto sectores da economia – todos procuram manter a sua actividade da melhor forma possível, com o intuito de chegarem com vida à outra margem, num período pós-covid.

Mas, a cultura não pode ser encarada como dispensável, nem o encerramento de uma instituição cultural deve ser entendido como normal.

A criação artística é, e tem sido, essencial neste ano atípico, que marcará, indelevelmente, a(s) nossa(s) vida(s), fazendo com que a negritude dos dias possa ter um horizonte de esperança.

Importa, por isso, mais do que nunca, continuar a promover o acesso às artes, ao património e à cultura, seguindo, e fazendo cumprir, todas as orientações emanadas pelas autoridades de saúde.

Este é o tempo de apoiar (permitindo o trabalho) quem vive e trabalha na cultura, nas artes e no património, encarando este universo como uma necessidade vital, como parte integrante e contributiva para o tecido económico e social, e não como uma matéria indiferenciada de que podemos prescindir.

Na luta contra a indiferença e a menorização com que, por regra, a cultura é encarada, importa frisar o seu papel como elemento nuclear na educação da sociedade como um todo e no fomento de um exercício complementar para alcançarmos, desejavelmente, uma cidadania mais esclarecida, mais responsável e que melhor interprete as dinâmicas sociais da comunidade onde se insere.

Por estas razões, e por todo um conjunto multifacetado e alargado de áreas artísticas e profissionais, é importante afirmar que a Cultura é segura.

+ Publicado na edição de 13/11/20 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A festa da democracia?

No rescaldo das eleições regionais, uma parte da solução governativa para os Açores é, agora, decidida, aparentemente, em Lisboa, como terreno (fértil) para a experimentação de (futuros) planos governativos (alternativos) no todo nacional. 

 O resultado eleitoral deu, inequivocamente, a vitória ao Partido Socialista (muito embora sem a maioria de votos obtida anteriormente). 

Este dado não terá constituído (propriamente) uma surpresa para Vasco Cordeiro, político acima de qualquer suspeita, em particular, pela preocupação manifestada, antes e durante a campanha eleitoral, no apelo à participação cívica e na procura de estabilidade governativa perante os tempos desafiantes que atravessamos e os (enormes) desafios de futuro (gerados pela pandemia). 

Maiorias absolutas são, nos dias que correm, uma (a)normalidade democrática, em particular, num tempo disruptivo como o que hoje experienciamos, onde a fragmentação social e económica passou a apresentar (paradoxalmente) uma clivagem mais acentuada. 

Por (de)formação académica privilegio a leitura qualitativa dos números, em detrimento da esterilidade quantitativa, a qual tem ocupado, sofregamente, alguma análise política na procura de interpretar o livre arbítrio dos eleitores. 

O xadrez parlamentar na Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores nunca foi tão colorido e isto, sim, deve ser celebrado, contrariando a ideia de que a democracia tem estado suspensa ou a de que foram estas as eleições que vieram “libertar” os Açores (seja lá o que isso significa). 

Por estes dias, importa recordar que foi por iniciativa do Partido Socialista que foi introduzido na lei eleitoral para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, o Círculo Regional de Compensação, o qual tem permitido uma maior equidade na distribuição de votos (no todo regional), aumentando, por este mecanismo, as possibilidades de pluralidade na representação parlamentar, como agora, uma vez mais, se comprova. 

 Assim como, foi, igualmente, por iniciativa do Partido Socialista, introduzida a limitação dos mandatos de Presidente do Governo Regional (para um máximo de três), um presidente independente para o Conselho Económico e Social e, mais recentemente, o Voto antecipado por Mobilidade. 

A nova composição do parlamento regional dará lugar a um conjunto de novas vozes do espectro político, reflexo imparável da rapidez (crescente) das transformações sociais que afectam todas as esferas da nossa vida colectiva. 

O Partido Socialista tem o dever de liderar a formação de um novo governo, interpretando, responsavelmente, os resultados eleitorais, agregando, de forma estável e consistente, um conjunto abrangente de vontades políticas. 

Contudo, existem valores com os quais não podemos estar de acordo, nem podem ser ultrapassados, sobretudo, aqueles que ignoram a autonomia regional, depreciam as instituições regionais, alimentam o populismo, promovem a calúnia e o reacionarismo da extrema-direita. 

Um acordo ou parceria com uma força política com este tipo de fundamentos significa, efectivamente, alienar um património construído, por muitas gerações de açorianos, ao longo dos últimos 45 anos. 

A festa da democracia? Sim. Mas esta festa (com estes convidados) não é minha.*

* Frase livremente adaptada de um texto de Milan Kundera (“Um Encontro”, editora D. Quixote, 2011).

+ Publicado na edição de 30/10/20 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Ignorada

O Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas - uma das mais importantes instituições culturais dos Açores - está a ser o palco dos debates na RTP-Açores para as eleições regionais de 25 de outubro, com a presença dos cabeças de lista e de representantes dos partidos que concorrem à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores. 

O espaço é de Cultura, mas a sua presença é evidentemente ignorada pela maioria dos participantes, como quase sempre o é, cumprindo, como habitualmente, uma quota simbólica (e minoritária). 

Este facto não constitui, propriamente, uma novidade. 

Continua a existir um enorme desconhecimento, aliado a uma falta de reconhecimento, acrescido de um sentimento depreciativo (e menorização) sobre quem vive e trabalha no sector cultural. 

A Cultura continua a ser entendida como um adorno e uma manjedoura de uns subsídio-dependentes que vivem (mal) à custa do sistema. 

Por estes dias, escrevem-se coisas como esta: “Um povo que mal se conhece, arrisca-se a ter ideias erradas e fantasiosas sobre si próprio, tem dificuldade em definir o futuro, recebe menos bem e fica nas mãos de quem aparecer” (sim, está num manifesto eleitoral de um partido político). 

Criou-se o mito de que a Cultura deve ser proteína para turista e que temos uma indústria (!) para alimentar. Como se o nosso devir colectivo estivesse dependente (apenas) do turismo, no qual os residentes são convidados a comparecer num casting de representação para um postal ilustrado em tempo real. 

Subsiste um enorme equívoco (colectivo) sobre este assunto. 

A ideia que preconizo para o sector cultural assenta num pressuposto que se traduz de forma simples: Cultura é sinónimo de criação artística, não é animação turística. 

O futuro do sector cultural exige um caminho profissionalizante, no qual não podemos tratar de forma igual o que é diferente, “ciente da importância da aposta na formação de públicos, na promoção da criatividade junto dos mais jovens, e no apoio à formação e à profissionalização dos jovens criadores dos Açores” (plasmado noutro contributo eleitoral). 

Podemos ter as melhores ideias para projectos (e iniciativas), mas, sem o devido (e necessário) reforço orçamental, estas de pouco ou nada servem. 

E não existe mercado para produtos que não são produzidos em série e cuja pesquisa, trabalho, experimentação e risco não são compagináveis com a venda a retalho. 

No contexto histórico actual é fundamental resistir contra quem tem um discurso anti-cultura, não raras vezes, realizado por quem diz que nada acontece mas que, paradoxalmente, nunca comparece nas múltiplas iniciativas que preenchem o profícuo calendário cultural. 

No radicalismo do tempo (presente) não se salva nada, nem ninguém, vivemos num espaço (público) polarizado cuja toxicidade está impregnada de ressentimento, “fomentando o sentimento anti-democrático e anti-político” (António Guerreiro, 25/09/20). 

E neste tempo (novo), com o carácter disruptivo gerado pela pandemia, a cultura depende, sobretudo, das instituições públicas. Os apoios parecem nunca ser suficientes mas sem os que existem estaríamos, garantidamente, pior.

* Publicado na edição de 02/10/20 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Viver (Açores)

O melhor ano de sempre! 

Foi a resposta (surpreendente) que obtive da funcionária de uma empresa de animação turística - numa das nossas reservas da biosfera - à pergunta sobre o desempenho da actividade em ano de pandemia. 

O incremento turístico durante o mês de Agosto, nas ilhas mais pequenas do arquipélago, superou as melhores expectativas. 

Este facto deveu-se, em larga medida, à forte adesão ao programa ‘Viver os Açores’, cuja implementação levou muitos (turistas) residentes a ilhas que não fazem parte das suas habituais opções para férias. 

E por este ter sido dado como um “ano perdido”, a maior parte dos serviços de apoio à actividade turística, nestas ilhas, não tiveram mãos a medir para a procura inusitada a que foram sujeitos. 

Um tempo extraordinário exige um grau de intervenção (preparação e antecipação) que vá para além daquilo que seria expectável. 

Assumir que a retoma da economia terá o mesmo desempenho (e retorno), num contexto como aquele que experienciamos, é negar (ostensivamente) o impasse em que o mundo está mergulhado. 

A reabertura da economia não trará (nem trouxe) a mesma resposta dos consumidores, existindo uma natural retracção por parte de quem viaja, sendo certo que enquanto não existirem soluções com um carácter definitivo em termos de saúde pública, não voltaremos, de um dia para o outro, aos dois dígitos de 2019

Até lá, terá de existir uma enorme capacidade de adaptação e resiliência, por parte de indivíduos, empresas e estado, por forma a mitigar as contingências com que nos confrontamos. 

Ao contrário do que assistimos na crise financeira (2008), o sector mais afectado não é, neste momento, a construção civil mas o dos serviços, sobretudo, aqueles relacionados com a actividade turística, da restauração à animação turística, da hotelaria à organização de eventos. 

Este é um ano excepcional em todas as dimensões da nossa vida colectiva, daí que, talvez, seja este o tempo (certo) para reflectirmos sobre o modelo de desenvolvimento, social e económico que temos. E, com uma boa dose de razoabilidade, planearmos estrategicamente sobre aquele que queremos para o futuro destas ilhas. 

O qual não está circunscrito (apenas) aos desafios e contrariedades que elas representam mas, sim, nas possibilidades que podem proporcionar, nomeadamente, como laboratório (à escala certa) para novas formas de coexistência sustentável. 

O programa ‘Viver os Açores’ teve (e tem) o mérito de colocar os açorianos a olhar para as outras ilhas do arquipélago como opção turística, em detrimento de outros destinos, muitos deles, arquipelágicos, noutras latitudes e com outra qualificação da oferta. 

Não deixa de ser paradoxal que assim seja mas tendo em conta o sucesso da iniciativa, considero que ela deva ser uma aposta durante a chamada época baixa, de modo a funcionar como factor atenuante da sazonalidade, incentivando os residentes à realização de umas miniférias (cá dentro) durante o inverno.

Esta iniciativa responde ao que defende António Costa Silva no seu documento "Visão Estratégica para o Plano de Recuperação 2020/2030", na medida em que para ele: “temos uma Administração Pública muito orientada para a emissão de pareceres e pouco orientada para a resolução dos problemas”. E insta, desde já, a “mudar essa cultura". 

É este sentido de urgência que a população espera dos serviços públicos (locais, municipais, regionais ou nacionais), na priorização da sua acção em mecanismos de resposta às dificuldades inerentes a esta crise.

* Publicado na edição de 18/09/20 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Como pode e deve o dinheiro que Portugal vai receber da União Europeia ser aplicado?





















Os fundos europeus ao dispor de Portugal para a década 2020/2030, e para os Açores, em particular, assumem, neste período, um carácter vital e uma urgência (acrescida), por forma a enfrentar a imperiosa recuperação económica gerada pela crise pandémica.

A economia global implica uma competição de igual para igual, não vamos lá com lamento (e idiossincrasia) mas com conhecimento, pelo que urge incrementar o investimento na melhoria do acesso, qualidade e modernização da educação (e formação profissional).

A cultura (em estreita articulação com a educação) deve substituir o hardware pelo software através de um processo de mediação para o conhecimento e fruição artística, com o intuito de gerar uma cidadania mais esclarecida, mais crítica e, nesta medida, mais participativa (democraticamente).

A Universidade dos Açores assume, neste propósito, um papel determinante. Contudo, tem de (saber) sair dos muros da academia para participar (activamente) no desenvolvimento da sua região, em áreas onde se pode distinguir (positivamente) das suas congéneres, principalmente, pela situação (privilegiada) que ocupa na economia do mar, ambiente e alterações climáticas.

Apesar de estarmos no centro de tudo (e em simultâneo, no meio de nada), devemos capitalizar os benefícios ambientais endógenos para afirmar os Açores como um exemplo (global) de boas práticas na gestão do território e da sustentabilidade energética.

A pegada ecológica dos produtos que produzimos (agrícolas e industriais) terá um peso cada vez maior na consciência social dos consumidores, pelo que urge alterar práticas, transformando o quantitativo em qualitativo (através da atribuição de uma personalidade exclusiva à nossa produção de pequena escala).

Os transportes (passageiros e mercadorias) são vitais para a nossa economia mas devemos pugnar por inverter a nossa balança comercial, exportando saber (ciência, digital e intelectual) e produtos de valor acrescentado (raros e exóticos).

É fundamental agregar investidores e marcas compagináveis com o destino turístico que afirmamos ser, nunca através de parcerias de baixo custo que nos vendem como um produto indiferenciado.

Esta é uma oportunidade que implica o futuro de várias gerações, pelo que será fundamental, a bem de todos, responsabilidade (e critério) no uso deste dinheiro.

* Publicado na edição de 17/08/20 do Açoriano Oriental

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

A natureza (desigual) do que está em jogo

Num tempo em que se confunde Cultura com animação turística à sombra de um drink, retomamos as nossas rotinas sob a égide da normalidade (possível), onde todos os cuidados são poucos na prevenção contra a disseminação da pandemia.

Para determinadas pessoas, o desconfinamento significa(rá) que tudo está bem (e o pior já passou), existindo, acredito, um excesso de confiança pelos resultados obtidos na contenção dos números do vírus. O controle de passageiros à chegada (aos Açores) faz com que (felizmente) não existam muitos casos novos, a vida social é realizada, na maior parte das vezes, ao ar livre na esperança (cega neste mito urbano) que o calor neutralize o vírus ou, como já ouvimos, que “isso não pega em gente nova” (RTP-Açores, 25/07/20).

O sector do turismo será aquele que (por estes dias) acusa com mais intensidade o decréscimo abrupto da actividade, depois de anos a subir a dois dígitos. Era expectável um abrandamento e a estabilização do crescimento. Mas nada, nem ninguém previu um evento desta magnitude.

De forma paradoxal, substituímos a discussão sobre a pressão da amálgama de turistas, pela urgência do seu regresso, principalmente por parte de quem deles vive. Perante o carácter extraordinário deste abalo económico, nesta e outras áreas complementares, não existirá outra solução que não o apoio estatal (e regional) para esta suspensão temporária de muitas empresas que não conseguem trabalhar (ou cuja viabilidade não é possível com o actual volume de negócios).

A pandemia chegou sem aviso prévio, pelo que não é plausível conceber uma reabertura nos moldes em que ela existia, com a agravante desta crise ser global, ao contrário da que a antecedeu, e com repercussões gravosas, sociais e económicas, nos principais mercados emissores.

Este tempo tem vindo a agudizar as desigualdades pré-existentes (à Covid-19), revelando a sintomatologia autocentrada de uma sociedade que vive (apenas) para si própria, a qual tem sido incapaz de enfrentar “sem desespero” o futuro, em particular, quando este se apresenta “ameaçador e incerto” (Gilles Lipovetsky, A Era do Vazio).

A tendência crescente de comunicarmos (online) com quem partilha das mesmas opiniões (e com direito a filtro do algoritmo) tem degradado “aspectos fulcrais do ecossistema relacional e social como a tolerância, a abertura, a reciprocidade, a paciência-espera, a deferência e responsabilidade, sem os quais não pode haver verdadeira empatia, democracia e humanidade” (Paulo Pires, 21/7/20).

A humanização dos nossos actos e de quem (supostamente) administra a justiça em nome do povo, não me parece compaginável com a extrapolação (anacrónica) de uma situação extraordinária resultante de uma ocorrência circunstancial (e de absoluto gozo egoísta).

Tal como referiu, e bem, Paulo Simões no seu último editorial (Açoriano Oriental, 02/08/20): “Afirmar que o uso obrigatório de máscaras ou que o isolamento profilático são medidas castradoras das liberdades individuais é ofender a memória de todos os que efetivamente se viram privados dos seus direitos, liberdade e garantias nos tempos da ditadura! É ofender todos os que ainda hoje vivem sob o jugo de regimes autoritários ou ditatoriais, onde, aí sim, é preciso pedir licença para respirar. A lei é para ser cumprida, mas a Lei é “um ser vivo” que cresce, evolui, adapta-se. Esgrimir o argumentário legal para justificar o incumprimento de normas cujo objetivo único é a proteção de todos é não querer compreender a natureza do que está em jogo.

O que é estranho, é que a compreensão de tudo isto seja, aparentemente, estranha para quem tem o dever de o superintender.

* Publicado na edição de 07/08/20 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Desvinculação (unilateral)

O aumento (exponencial) da actividade turística (no país e na região) atenuou os efeitos devastadores da crise financeira de 2008, gerou emprego e, concomitantemente, riqueza.

Nestes últimos cinco anos, assistimos ao incremento (sem paralelo) de um sector estigmatizado pela sazonalidade, cuja evolução (recente) averbou o inimaginável: dores de crescimento perante o fluxo (incondicional) da oferta.

Fruto do investimento realizado na promoção (externa), o arquipélago passou a ser referência em múltiplas publicações internacionais e o exemplo para as melhores práticas de gestão ambiental.

Nem tudo será perfeito, como nada o é. Contudo, será importante valorizar o que outros sinalizam como diferenciador, na medida em que nos flagelamos com as nossas insuficiências (à espera que alguém nos resolva o problema), revelando alguma relutância em dar boa nota daquilo que temos de positivo.

O investimento externo é (hoje) premente, através do qual assistimos à multiplicação de projectos qualificadores da oferta turística, um pouco por todas as ilhas dos Açores.

Se antes da pandemia discutíamos o aumento da carga turística em locais sensíveis, ou a nidificação de projectos hoteleiros sobredimensionados e descontextualizados da realidade geográfica, social e económica, no momento actual, o dilema reside no reduzido número de turistas que aporta à região, com tudo o que isto implica, a começar pela dificuldade em resistir ao inverno, sem que haja um verão que o compense.

Este é um tempo extraordinário e paradoxal, o que hoje é verdade, amanhã será desmentido.

O confinamento à luz do(s) ecrã(s) fez as pessoas acreditar num mundo melhor, mais justo e solidário.

O regresso à realidade suplantou a intenção, no qual voltamos à(s) rotina(s) e à determinação em manter tudo como era dantes.

A cada dia que passa verificamos que não é, nem será assim. A inevitabilidade das evidências leva-nos a resistir (e a ignorar a mudança).

Neste processo de transição, o estado e as instituições públicas são vitais para a manutenção de sectores importantes da nossa vida colectiva (Cultura, inclusivamente). E para - no meio deste mar de incerteza(s) - transmitir confiança às populações, garantindo “medidas de emergência” e um programa que “garanta a estabilidade e sobrevivência futuras” (Gonçalo Riscado, 08.07.20).

E porque no dia em que existir um tratamento (ou uma vacina) e retornarmos, de facto, a uma coexistência normal (sem ser higienizada), queremos que tudo fique à nossa disposição e daqueles que nos procuram como destino turístico.

O que não pode acontecer é a desvinculação unilateral de uma entidade pública, nomeadamente, a Câmara Municipal de Ponta Delgada que reduziu, de forma inqualificável, os apoios concedidos aos agentes culturais do concelho, retirando o tapete a muitos projetos que subsistem por intermédio da previsibilidade veiculada (e aprovada) pelo Regulamento Municipal de Apoio a Atividades Culturais.

Esta atitude não é compaginável com um período do qual se exige cooperação e responsabilidade dos gestores da coisa pública.

Desvirtuar as pessoas que dependem (quase em exclusivo) deste sector de atividade, é não compreender que existem pessoas e empregos depois do espectáculo acabar.

Será este um passo no processo de candidatura a Capital Europeia da Cultura? 

* Publicado na edição de 24/07/20 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 10 de julho de 2020

Irrefutável

Vivemos um período de enorme expectativa quanto ao evoluir da pandemia, saturados que estamos do confinamento e em que se torna prioritário o retomar, em pleno, da actividade económica.

Em paralelo, somos confrontados com indicadores que nos dão contam que os números não estabilizaram em território nacional e que existem várias cadeias de transmissão activas (do vírus), sobretudo, na região da Grande Lisboa.

O desconfinamento era (e é) uma inevitabilidade, já todos o sabíamos. Mas o mesmo não é dizer que o pior já passou quando são mais as dúvidas do que as certezas. E todos os dias, a nível global, são registados recordes de mortes e novos infectados.

Parte do problema está na percepção (pela população) da mensagem transmitida pelas entidades oficiais, a qual tem sido, repetidamente, desacreditada, na medida em que, por exemplo, no início do período de confinamento não era preciso usar máscara, para mais tarde ser assumido que sim.

A intenção tal como foi comunicada, pareceu errática. Os efeitos não se fizeram esperar e, neste momento, passamos da categoria ‘exemplar’, na contenção e no combate à pandemia, para o nível ‘indesejado’ (e impedidos de viajar para diversos países europeus).

No caso dos Açores, temos sido mais cautelosos neste processo de ‘regresso à normalidade’, o qual tem vindo a efectivar-se a um ritmo próprio e desfasado do calendário nacional.

Não dispondo de toda a informação relativa à complexidade da execução, e aplicabilidade, de um plano sanitário, num território disperso e fragmentado, em que os meios disponíveis são díspares, parece-me que esta tem sido uma atitude previdente e tem surtido bom efeito (mesmo e apesar de todas as questões que possam ter corrido menos bem).

Este tempo tem demonstrado o quão importante significa ter um estado forte e com capacidade de resposta.

As instituições públicas (da Saúde à Cultura) implicam um investimento continuado. Não podemos partir do princípio que está tudo feito e que não é necessário investir novamente, sendo que parte deste (re)investimento não é (exclusivamente) material. A (melhor) capacitação do sector público requer meios humanos motivados e com recursos ao seu dispor.

Nada tenho contra a iniciativa privada e concordo, em absoluto, com os incentivos públicos atribuídos às empresas (do pequeno investidor ao grande grupo económico).

Contudo, este apoio não pode ser realizado às custas de um desinvestimento na administração pública, nem pela depreciação dos seus quadros e das suas condições de trabalho.

O absurdo da situação que todos experienciamos, tem sido a prova irrefutável de que necessitamos de um Sistema Nacional (Regional) de Saúde eficaz e com elevado sentido de compromisso.

A este respeito, li uma entrevista ao médico Roberto Roncon, coordenador do Centro de Referência de ECMO do Centro Hospitalar Universitário de São João, o qual está a trabalhar há três meses consecutivos, sem folgas, e que vai ter, finalmente, quatro dias de férias com a família (mas sem desligar o telefone).

Retive esta passagem. “Dizer que o SNS é muito importante mas fazer declarações que dão a entender que o que nós fizemos não foi mais do que a nossa obrigação não é verdade. O que nós fizemos não é normal, está para lá do que é previsível. O que nós estávamos à espera era de um mínimo reconhecimento” (Expresso, 24 junho 2020).

Ninguém é negligenciável, em particular, todos os profissionais que todos os dias se confrontam com uma doença da qual pouco ou nada se sabe e que, ao contrário do que se possa pensar, não desapareceu.

Pede-se, responsabilidade e bom senso.

* Publicado na edição de 26/06/20 do Açoriano Oriental
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sexta-feira, 19 de junho de 2020

Resiliência (comunitária)

No rescaldo da primeira vaga da pandemia regressamos à rotina (possível) com a (necessária) responsabilidade individual (e colectiva), por forma a superar os enormes desafios com que nos confrontamos.

O mundo continua pandémico mas, ao contrário das primeiras semanas de confinamento, as notícias sobre o desenvolvimento das investigações sobre tratamentos e o progresso no caminho para uma vacina são, actualmente, ruído envolto em polémica e contradição.

Num período em que muitos contestam as rigorosas medidas de confinamento devido à Covid-19, ficamos a saber que um estudo do Imperial College (Inglaterra) afirma que podem ter sido evitadas 3,1 milhões de mortes em 11 países europeus, na medida em que o “fique em casa” teve um “efeito substancial” e ajudou a baixar a taxa de transmissão da infeção (Rt). O estudo não inclui Portugal mas não será por isso que deixa de ser credível.

A crise económica que entretanto se instalou leva (previsivelmente) a que o clima contestatário suba de tom. No entanto, importa ressalvar que perante a inexistência de dados esta é, foi e continua a ser a melhor arma para travar o vírus. E se, entre nós, a mortalidade associada ao Covid-19 tivesse tido números mais expressivos (com todo o respeito por todos aqueles que perderam a sua vida), qual seria o discurso de quem contesta as restrições do confinamento, a morte do Governo? Provavelmente.

A procura por uma causa externa que justifique o que se passou, ou a imputação da culpabilidade para um organismo tangível, é um argumento tão disseminado como a própria pandemia.

Neste capítulo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) passou a ser arma de arremesso para justificar a impotência das nações na luta contra um inimigo invisível para o qual não há cura.

O discurso populista (reacionário e xenófobo) tomou conta da realidade (virtual e concreta). Mas se há algo positivo neste vírus, permitam-me a ironia, é a de ter feito cair a máscara a muita gente.

A desigualdade (social e económica) não é (apenas) aparente, por estes dias a contingência sanitária tornou-a saliente, veio para a rua e está à flor da pele.

Desenganem-se aqueles que consideram que a resolução económica para os problemas gerados pelo confinamento está circunscrita a estes nove calhaus, como por vezes se ouve por aí. O incremento do turismo, como dos restantes sectores económicos, será gradual e dependerá, em larga medida, da confiança dos países emissores/consumidores.

A resposta à crise depende (inexoravelmente) da nossa resiliência e do nosso sentido de comunidade, pois “sem compaixão e fraternidade fortalecem-se apenas os muros e aliena-se a possibilidade de lançar raízes” (José Tolentino de Mendonça, 10 junho 2020).

Paralelamente, temos de garantir os meios financeiros necessários (e fundamentais) para a retoma consolidada da actividade económica, por intermédio, como já foi noticiado, de uma intervenção substancial da União Europeia. A Região tem feito o que lhe compete no complemento (e reforço) às medidas de apoio nacionais mas o tecido económico (e social) exige um reforço dos recursos que temos ao nosso dispor.

A pandemia é global mas as diferenças (culturais e geográficas) não se dissiparam, apenas o problema aparenta ser partilhado.

Nesta semana, voltamos a identificar mais um caso positivo entre nós. Pelas razões que todos conhecemos, selar o espaço aéreo não é uma opção.

Nem me vou dar ao trabalho de esgrimir argumentos sobre o conceito de (des)continuidade territorial, nem sobre a urgência da discussão constitucional (e da extensão dos poderes da Autonomia que nos assiste). Não deprecio a relevância da matéria, apenas considero que há prioridades.

Esta é a prova que evidencia a importância de testar quem aterra. Não vale a pena diabolizar a coisa, e como já todos percebemos, vamos ter de aprender a lidar com isto (dentro da normalidade possível). E sim, estamos (melhor) preparados, não podemos é continuar paralisados. Não é (nem será) bom (para ninguém).

* Publicado na edição de 12/06/20 do Açoriano Oriental
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quarta-feira, 3 de junho de 2020

Ruído (excessivo)

Aprendemos a desconfinar com o manto da segunda vaga (covid-19) como cenário eventual.

O mundo intenta lidar com um problema do qual ninguém tem memória nem sequer é comparável, nem há verossimilhança possível, por exemplo, com outras crises económicas.

O infortúnio (global) que se perspetiva no presente imediato (e no próximo futuro) resulta da urgência sanitária para preservação das respostas dos sistemas de saúde. Neste sentido, fruto deste cuidado e mitigação, é possível implementar medidas de apoio (incentivo comercial e de confiança dos consumidores) para um regresso ao (novo) normal (seja lá o que isso for).

Não partilho da ideia romântica (que se propagou durante os dias de quarentena) de que no final disto tudo (cujo desfecho é incerto) ia #ficartudobem. Não vai.

Nem toda a população passou (e está a passar) por este tempo da mesma forma, na medida em que há quem não tenha perdido rendimentos e está ‘entediado’ com o confinamento (forçado), noutro sentido, temos empresários e empreendedores que fecharam e perderam a sua carteira de negócios (de um dia para o outro) e assistimos a muitos trabalhadores (em suspenso) na incógnita de saber se vão (ou não) regressar ao trabalho.

No meio deste pandemónio há sempre quem encontre mais-valias e perspective oportunidades. A nova fórmula dos gurus da economia (alimentadores de esperança virtuosa perante o desespero alheio).

Parte da nossa economia existe (e subsiste) devido ao nosso (re)encontro comunitário, do turismo à cultura. Sem um regresso a estas práticas que nos definem como indivíduos, e como sociedade, dificilmente haverá normalidade, possível (ou forçada).

E, contrariamente ao que muitos poderão ter considerado, há coisas que nunca irão mudar. Uma parte (significativa) deste processo de desconfinamento não acontece por uma questão de saúde mas pelo regresso (necessário) da economia.

Se há coisa que (a cada dia que passa) nos parece evidente, é a de que temos de aprender a (con)viver com o vírus, com as novas regras de higienização e de distanciamento, sendo “impressionante o número de pessoas que esperam que uma catástrofe seja a oportunidade para resolver problemas” e que de forma visionária (e magnânima) proponha que se altere (radicalmente) “o modelo de sociedade”, substituindo “os valores vigentes” e alterando “os padrões de consumo.” (António Barreto, 19/04/20).

Não acredito em processos de purificação colectiva, nem no oportunismo gerado por esta pandemia para regenerarmos a humanidade. No país mais poderoso do mundo, temos o exemplo maior na (pior) gestão de uma crise (sem precedentes) através da desinformação, do divisionismo e no fomento do ódio.

Este é momento em que (aparentemente) somos todos especialistas (no conforto da timeline), local privilegiado para a disseminação de posições extremadas e de (múltiplos) ódios. Neste tempo extraordinário, a única certeza que temos é a de não ter (ou ninguém deter) certeza(s) sobre (quase) nada.

Perante o ruído (excessivo) dos ecrãs e do lead noticioso, este deveria (também) ser um tempo de reflexão, para “memória futura e “lucidez no presente”.

E para quem governa na incerteza dos dias, entre a coragem e a loucura, é necessário “uma boa dose de humildade” para benefício de “novos processos de aprendizagem que possibilitem outro tipo de abordagem à realidade” (Rui Torrinha, 24/05/20), com vista à sua transformação e calendarização (futura) no retomar da nossa vida colectiva.

* Publicado na edição de 29/05/20 do Açoriano Oriental
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quinta-feira, 14 de maio de 2020

Cultura (em tempo de pandemia)

O confinamento social a que estamos sujeitos tem revelado, simultaneamente, o melhor e o pior que há em nós.

Temos assistido a um conjunto significativo de iniciativas solidárias para acudir aos menos protegidos, cuja precariedade é mais evidente no modelo económico (e social) vigente, o qual fragiliza quem está mais vulnerável.

Por outro lado, proliferam as teorias da conspiração e a partilha de factos falsos e erróneos que disseminam o ódio (e o medo) pelo outro.

A incerteza dos dias alimenta a oportunidade dos populistas que navegam no éter da timeline à procura de um lugar no pódio do soundbite, no qual “as redes sociais, espelho ampliado e distorcido da realidade, estão cheias de sinais de angústia e ressaca” (Cristina Fernandes, Revista Electra nº 8).

Este não é o tempo de procurar inimigos sem rosto, nem reivindicações anacrónicas destituídas de sentido e representatividade. E com isto não estou a dizer que está tudo bem. Vivemos numa democracia, conquistamos o dever de ser críticos e de manifestar a nossa opinião com absoluto sentido de responsabilidade.

Em dias de pandemia passamos (ainda) mais tempo em redor dos ecrãs, inertes à luz que emana dos vários dispositivos ao nosso dispor.

A sedução é evidente. Perante o imobilismo passamos a socializar, quase em permanência, em formato digital.

Mesmo os utilizadores mais relutantes renderam-se às evidências. E não se iludam, há mesmo um admirável mundo novo que veio para ficar.

Os números dos serviços ‘on demand’ têm atingido valores nunca dantes atingidos e que só se explicam pelo aumento exponencial do consumo de conteúdos (comunicações) em casa.

A título de exemplo, o Barómetro de Telecomunicações da Marktest (28/04/20) indica que são, agora, mais de dois milhões os portugueses que subscrevem plataformas de entretenimento em streaming. E que registou, por exemplo, entre Fevereiro e Abril, mais 800 mil subscritores de serviços como a Netflix ou a HBO.

Este ‘novo normal’ tem levado a concessões sem paralelo na indústria cinematográfica, sendo possível assistirmos, na cerimónia dos Óscares do próximo ano, à nomeação de filmes que foram exibidos (apenas) em ‘streaming”.

Resta saber se esta é uma concessão temporária ou se veio para ficar. Só o mercado o dirá.

Apesar do beneplácito pela profusão da disponibilização de conteúdos culturais/informativos online, há que sublinhar que existem pessoas por detrás do ecrã e que o produto do seu trabalho faz-nos “sentir vivos” mas cuja profissão - à semelhança de muitos outros sectores essenciais que têm sido valorizados por estes dias, é “mal renumerada, com pouco reconhecimento social, mas também (…) alvo de aplausos.” (Vitor Belanciano, 03/05/20).

É importante que a emergência deste estado de coisas não conduza à calamidade do sector cultural, um dos primeiros a fechar e, muito provavelmente, um dos últimos a abrir, apesar do Plano de Desconfinamento apresentado esta semana. É uma área resignada a sucessivos “financiamentos insuficientes” (Cíntia Gil, 10/04/20), pelo que importa, por isto, não cair na tentação de aplicar um corte (cego) nos apoios aos artistas e no financiamento das instituições culturais.

O futuro da cultura em tempo de pandemia dependerá, também, da prioridade que lhe for consignada.

* Publicado na edição de 04/05/20 do Açoriano Oriental
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